Acervo Folha https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br No jornal, na internet e na história Fri, 19 Feb 2021 13:40:24 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Personagem de humor, Barão de Itararé se autoproclamou imperador da Ursas https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/08/13/personagem-de-humor-barao-de-itarare-se-autoproclamou-imperador-da-ursas/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/08/13/personagem-de-humor-barao-de-itarare-se-autoproclamou-imperador-da-ursas/#respond Tue, 14 Aug 2018 01:36:06 +0000 https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/files/2018/08/barao_-320x213.jpg https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/?p=10286 No debate entre candidatos a presidente na última quinta-feira (9), Cabo Daciolo (Patriota) utilizou, de forma séria, a sigla Ursal para se referir a um suposto plano para a construção de uma União das Repúblicas Socialistas da América Latina.

O termo virou piada na internet. Mas, na década de 30, o jornalista e humorista Apparício Torelly já brincava nas páginas da publicação A Manha, uma sátira ao jornal A Manhã, com algo semelhante.

Em seus textos de humor, ele criou a Ursas —que seria a União das Repúblicas Socialistas da América do Sul. A sigla era muito parecida à URSS, da União Soviética

O jornalista usava o nome Barão de Itararé, mas, gradativamente, foi aumentando o seu falso título de nobreza. Passou a dizer que tinha virado duque, grão-duque e imperador.

No dia 21 de novembro de 1931, a Manha publicou um “Manifesto á União das Republicas Sacialistas da Ameaica do Sul” (sic).

Na página, estava destacado que: “O grão-duque de Itararé corôa-se imperador dos povos opprimidos do continente austral do novo mundo” (sic).

Torelly ficou muito popular com os textos de humor. Na política, concorreu a uma cadeira de vereador no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, pelo PCB, em 1947.

O seu lema era “Mais leite! Mais água! Mas menos água no leite!”. Elegeu-se com 3.669 votos. Porém, em janeiro de 1948, os vereadores do partido foram cassados.

Torelly continuou a sua vida no jornalismo.

No livro “AlManhaque”, publicado em 1955 e ampliado em 1995 –em parceria com o diagramador e chargista paraguaio Andre Guevara–, a sigla Ursas voltou a aparecer.

​Ele brincou escrevendo que a “embaixada mais austera, mais solene e alinhada, entre as 50 representações estrangeiras” que vieram assistir à posse de Juscelino Kubitschek como presidente foi “sem dúvida a chefiada pelo exmo. sr. Barão de Itararé, que compareceu ao Palácio Tiradentes por si e pelo Território Livre de Itararé, que já faz parte das Ursas”.

]]>
0
1948: Monteiro Lobato morre aos 66 anos, após se dizer curioso em conhecer fim da vida; leia entrevista https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/07/04/1948-monteiro-lobato-morre-aos-66-anos-apos-se-dizer-curioso-em-conhecer-fim-da-vida-leia-entrevista/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/07/04/1948-monteiro-lobato-morre-aos-66-anos-apos-se-dizer-curioso-em-conhecer-fim-da-vida-leia-entrevista/#respond Wed, 04 Jul 2018 10:56:38 +0000 https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/Lobato_-320x213.jpg http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/?p=9936 Vítima de um derrame cerebral, o escritor José Bento Monteiro Lobato, um dos mais populares do Brasil, morreu aos 66 anos, na madrugada de 4 de julho de 1948, em São Paulo.

Cerca de um ano antes de isso ocorrer, ele havia declarado, em entrevista exclusiva para a Folha da Noite (um dos jornais que deram origem à Folha), que já não tinha mais pretensões e que estava curioso em saber o que acontece depois do fim da vida.

“O meu cavalo está cansado, querendo cova —e o cavaleiro tem muita curiosidade em verificar pessoalmente se a morte é vírgula, ponto e vírgula ou ponto-final”, disse.

Quando a entrevista foi publicada, no dia 22 de abril de 1947, o escritor estava com 65 anos e morava em Buenos Aires, mas se preparava para voltar a viver no Brasil.

Lobato é autor de obras como “Reinações de Narizinho” e “Caçadas de Pedrinho”, que eternizaram as aventuras do “Sítio do Picapau Amarelo” e marcaram a infância de muitas crianças.

Também fez muito sucesso com jovens e adultos, publicando livros como “Urupês”, no qual aparece o famoso personagem Jeca Tatu, e “Cidades Mortas”, que retrata o declínio de municípios no Vale do Paraíba, em São Paulo.

Ele residiu por um ano, entre 1946 e 1947,  na Argentina, onde suas obras infantis tiveram grandes tiragens.  O motivo de viver naquele país, segundo afirmou, era “visitar os trinta filhos sob forma de edições de livros” que lá tinham sido lançados.

No entanto, Lobato sentia nostalgia da língua portuguesa e por isso queria retornar ao Brasil:

“Descobri que pátria é pura e simplesmente a língua nativa, na qual, desde o ‘papá-mamãe’, vivemos organicamente como o bicho dentro da goiaba. Sinto-me bicho fora da goiaba, e quero a goiaba”, disse.

A entrevista dada à Folha da Noite foi realizada durante uma visita ao escritor em Buenos Aires.

Lobato, que reclamou da imprensa por lhe atribuir falsas declarações, aceitou responder por escrito a algumas questões, publicadas no fim da reportagem.

“O método americano de entrevista de jornal é que é batata. O repórter escreve as perguntas, o entrevistado as devolve datilografadas e não há jeito da confusão se estabelecer”, afirmou.

Leia abaixo a íntegra do texto publicado pela Folha da Noite,  com a grafia original:

22 de abril de 1947

A morte é virgula, ponto e virgula ou ponto final?

Monteiro Lobato, que vai regressar ao nosso país, quer verificar essa “inquietação”

Em entrevista exclusiva para Folha da Noite narra o grande escritor as verdadeiras razões de sua viagem à Argentina e os motivos que o trazem de volta ao Brasil, aonde deverá chegar dentro de poucos dias

Correspondência especial para a Folha da Noite

BUENOS AIRES, abril, por via aerea – Monteiro Lobato voltará ao Brasil no fim deste mês. Desta vez vai mesmo. E vai para ficar.

O seu retorno, tantas vezes anunciado e tantas vezes desmentido, foi-nos comunicado com essas simples palavras:

— Estou de malas prontas para voltar a São Paulo. Vou ficar em hotel, já que não há casa…

Foi assim que Monteiro Lobato nos revelou uma noticia que todos os verdadeiros amigos e discipulos do grande escritor desejavam ouvir há tanto tempo. E concluiu, resmungando:

— Não vá publicar nada do que lhe disse. Isso aqui é uma informação para uso pessoal e não uma entrevista. Veja esses recortes são de entrevistas a mim atribuidas. E olhe quanta besteira contem esse pequeno trecho, quanta besteira em tão poucas linhas!

Uma entrevista nada fácil

A verdade, entretanto, é que nossa entrevista saiu sem que nós ou Monteiro Lobato estivessemos com esta intenção. Ao visitá-lo, não nos passava pela cabeça entrevistá-lo. Alem do mais, quasi que não havia nenhuma originalidade em mais uma entrevista com Lobato.

Raro é o jornalista brasileiro que vem a Buenos Aires e não corre logo à casa de Lobato. Que belo assunto para jornal. O reporter nem tem que fazer força. Lobato—e como ele e sua familia sabem receber bem os brasileiros que passam por aqui!—vai dizendo, com aquele seu geitão de caipira paulista, frases que podem constituir cada qual uma manchete. Mas, quando a entrevista sae lá vem o estrilo.

A culpa, porem, nem sempre é do reporter. Não é nada facil registrar mentalmente o aluvião de coisas interessantes que o escritor vai dizendo. Alem do mais, aqueles dois olhos negros, escondidos debaixo de um par de imponentes sobrancelhas, não param de se agitar. O pobre do reporter nem sabe o que deve registrar primeiro—as palavras ou a malicia do olhar, as frases ou aquela gargalhada nervosa e indecifravel.

E enquanto essa pequena tragedia profissional ocorre, Lobato—sem se dar conta de que o reporter esfrega intimamanete as mãos de contente—vai distilando a sua amargura, essa amargura que o torna um dos espiritos mais construtivos do Brasil.

É por isso que a gente passa por burro”

Foi assim que nasceu esta entrevista. Lobato agitou no ar um dos últimos recortes que recebera de São Paulo, onde alguem colocara em sua boca que “o Brasil melhorara porque não estava mais dominado por politicos ossudos, bojudos e soturnos”.

— Eu nunca diria esse amontoados de asneiras. Ora, ora, politicos ossudos e bojudos Você é capaz de me explicar o que quer dizer isso? Naturalmente me referi a qualquer outra coisa e o reporter fez a confusão.

Sim, Lobato tinha razão. Mas—que diabo!—ele estava falando com um jornalista. E o instinto profissional se manifestaria … Assim, de mansinho, partiu a insinuação:

— O metodo americano de entrevista de jornal, é que é batata. O reporter escreve as perguntas, o entrevistado as devolve datilografadas e não há geito da confusão se estabelecer.

— É isso mesmo, respondeu Lobato. O que nos falta é metodo, é sistema. É por falta dessas coisas que a gente passa tantas vezes por desonesto e burro.

Enquanto Lobato falava, rabiscavamos—como quem não quer nada—um questionario. E o escritor mais lido e difundido na America Latina, caiu na armadilha como um patinho.

Por detras da cortina de ferro

Aliás, para aproveitar a deixa, esta não é a primeira demonstração de inocencia de Lobato. Apesar de seu ar feroz e casmurrão, ele é um dos homens mais puros do Brasil. E daí tantas de suas dores de cabeças.

A gente está habituada a vêlo revolver e espicaçar a vaidade nacional com uma critica impiedosa e incorruptivel, como raros são os intelectuais do Brasil com coragem de fazê-lo. Entretanto, por detrás da cortina de ferro de cepticismo e descrença de Lobato, encontra-se um homem que ama o Brasil e que para torna-lo melhor vai dos livros ao fundo da terra, cria a Jeca Tatu, organiza editoras e funda companhias de petroleo e ferro, para ver se a coisa toma melhor jeito.

Aqui mesmo, em Buenos Aires o dedo de Lobato se acha por trás de tudo que signifique melhorar o nome e a posição do Brasil diante do povo argentino.

Há uma exposição de livros brasileiros. Oficialmente, é a nossa embaixada a sua organizadora. E não há dúvida que o jovem e eficiente secretario, Murilo Pessoa, dedicou-se a ela com o melhor dos seus esforços. Mas, é ele mesmo quem nos confessa:

—Monteiro Lobato foi o primeiro e o que mais nos animou e auxiliou na realização desse empreendimento.

E, se um dia a correspondencia de Lobato for publicada—aliás, por que é que ninguem não se lembrou ainda de editá-la?—a gente descobrirá a preocupação de Lobato, por um Brasil melhor através dos inumeros exemplos, sugestões, planos, criticas, conselhos, que ele envia incansavelmente daqui para os seus amigos e companheiros do Brasil.

O meu cavalo está cansado”

Mas, isso já é assunto para outra conversa. Aqui, o que nos interessa é a entrevista, a primeira que Lobato afirma ser plenamente autorizada para os jornais do Brasil.

E, lá vai ela, tal e qual Lobato a redigiu, respondendo ao nosso questionario:

P [Pergunta] — Em verdade, por que saiu do Brasil?

R [Resposta] — Para visitar na Argentina os trinta filhos que lá tenho sob forma de edições de livros.

P — E agora, qual a verdadeira razão de sua volta ao Brasil?

R — Nostalgia da lingua. Descobri que Patria é pura e simplesmente a lingua nativa, na qual, desde o “papá-mamãe” vivemos organicamente como o bicho dentro da goiaba. Sinto-me bicho fora da goiaba, e quero a goiaba.

P — Comparativamente, quais as diferenças fundamentais de vida no Brasil e na Argentina?

R — As mesmas que há entre um automovel que já partiu e um automovel cujos passageiros ainda discutem com o chofer sobre o caminho a tomar.

P — Olhando de longe, seus pontos de vista sobre o futuro do Brasil sofreram qualquer alteração?

R — Nenhuma. Perto ou longe o nevoeiro é o mesmo.

P — Acha que a Argentina de hoje oferece alguns exemplos que o Brasil poderia aceitar e aplicar para o seu proprio desenvolvimento?

R — Acho que a abundancia de agua nas torneiras argentinas é um exemplo dignissimo de ser imitado pelas torneiras cariocas.

P — Voltando ao Brasil pretende divulgar o que viu na Argentina?

R — Divulgar a existencia de bifes para o faminto e agua para o sedento me parece obra de uma crueldade.

P — Finalmente, retornando ao Brasil, que pretende fazer ?

R — Que pretendo fazer? Rebolar-me dentro da goiaba, contemplar o umbigo e preparar-me num convento para a viagem final. O meu cavalo está cansado, querendo cova —e o cavaleiro tem muita curiosidade em verificar pessoalmente se a morte é virgula, ponto e virgula ou ponto final.

]]>
0
1988: Morre Aracy de Almeida, jurada de TV e maior intérprete de Noel Rosa https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/06/20/1988-morre-aracy-de-almeida-jurada-de-tv-e-maior-interprete-de-noel-rosa/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/06/20/1988-morre-aracy-de-almeida-jurada-de-tv-e-maior-interprete-de-noel-rosa/#respond Wed, 20 Jun 2018 11:00:02 +0000 https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/files/2018/06/Aracy1-320x213.jpg http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/?p=9737 “Mas que putaria, eu não posso estar aqui”, afirmou Aracy de Almeida à sua afilhada Maria Adelaide Bragança minutos antes de uma embolia pulmonar  tirá-la de cena aos 73 anos, na tarde de 20 de junho de 1988, no Hospital dos Servidores do Estado (centro do Rio), onde estava internada havia 13 dias por causa de um acidente vascular cerebral.

Personagem das mais memoráveis da TV brasileira, onde encarnou a jurada “ranzinza” em quadros de calouros, o último deles no Programa Silvio Santos –onde estava desde 1975–, Aracy de Almeida foi, sobretudo, uma das mais proeminentes cantoras da era de ouro do rádio. No samba, gênero que adotou para a carreira, foi considerada a mais fiel intérprete de Noel Rosa, ao lado da cantora Marília Batista.

Aracy, que nunca se casou nem teve filhos, foi sepultada no cemitério Parque Jardim da Saudade (Rio) depois de ser velada por cerca de 20 mil pessoas no Teatro João Caetano, onde em 1981 e 1982 fez suas últimas apresentações como cantora, ao lado de João Nogueira e do grupo Coisas Nossas, respectivamente.

“O mais triste é saber que toda esta gente veio aqui para se despedir da jurada de televisão. Quase ninguém mais lembra que ela foi uma grande cantora”, disse o compositor e pesquisador da música brasileira Hermínio Bello de Carvalho, que esteve na cerimônia para dar o último adeus à cantora e amiga.

Aracy Teles de Almeida, ou “Araca”, como também era chamada pelos amigos, nasceu em 19 de agosto de 1914, na rua Guilhermina, no bairro suburbano do Encantado (zona norte do Rio), onde morou até o fim da vida. Filha de uma dona de casa e de Baltasar Teles Almeida, um pastor protestante e funcionário da Central do Brasil, Aracy, que dizia nunca ter brincado de boneca nem de ciranda durante a infância, era a única mulher entre os cinco filhos da família.

O SAMBA EM PESSOA

Durante a adolescência, a pulsação pelas batucadas do Rio levou Aracy a ser uma assídua frequentadora de escolas de samba na zona norte da cidade, onde aprendeu as gírias, os trejeitos e a ginga que acabaram se tornando marcas na vida da artista. Em entrevistas revelou que a escolha pela música veio por necessidade. “Era uma menina pilantra, safada, que não queria estudar e não sabia fazer nada. Daí, só mesmo cantando.”

Aracy começou muito jovem. O primeiro contato direto com a música foi quando integrou corais evangélicos no bairro do Méier (zona norte do Rio). Depois, contrariando os preceitos religiosos da família, passou a cantar em candomblés no Engenho de Dentro, também na zona norte.

NOEL ROSA

A entrada na música popular se deu no início dos anos 30, sob influência de Carmen Miranda, cantora que Aracy admirava e tentava imitar no início da trajetória. Sua dicção peculiar, caracterizada por sua voz nasalada, foi elogiada num estudo de Mário de Andrade numa conferência em 1943.

O primeiro empurrão para o profissionalismo, porém, foi dado pelo compositor Custódio Mesquita, que, em 1933, a levou para um teste no programa Pinocchio, da Rádio Educadora (depois Tamoio), onde cantou a marchinha “Bom Dia, Meu Amor” (Joubert de Carvalho e Olegário Mariano), sucesso na voz de Carmen Miranda. Foi lá que conheceu o eterno “poeta da Vila”, Noel Rosa, que no mesmo dia compôs para a estreante “Seu Riso de Criança”, após ter ouvido e apreciado o raro timbre vocal da iniciante.

Aracy e Noel se tornaram grandes amigos, construindo uma parceria que duraria até a morte do compositor em 4 de maio de 1937, de tuberculose. Dele, gravou “Feitio de Oração”, “Palpite Infeliz” e “O X do Problema”, entre outras. O último trabalho foi a melancólica “Último Desejo”, cuja interpretação Noel não teve tempo de ouvir.

Em 1934, Aracy  foi contratada pela Columbia, onde gravou o seu primeiro disco, com a marcha carnavalesca “Em Plena Folia”, de Julieta de Oliveira. Depois, assinou com a Rádio Cruzeiro do Sul. Daí não demorou muito até a sambista ser convidada pela RCA Victor, onde gravaria “Cansei de Pedir”, “Triste Cuíca” e “Amor em Parceria”, todas de Noel. Logo passou pelas rádios Philips, Mayrink Veiga, Ipanema e Tupi. Ao longo da carreira foram mais de 400 canções gravadas.

OUTROS COMPOSITORES

A trajetória de Aracy na MPB não se resumiu apenas à grandeza de ter sido uma das maiores intérpretes de Noel. A “Dama da Central”, como também ficou conhecida, emprestou sua voz a vários outros nomes do cancioneiro brasileiro.

Dentre as composições que a sambista gravou estão “Helena” (Raul Marques e Ernâni Silva), “Vaca Amarela” (Lamartine Babo e Carlos Neto), “Saudosa Favela” (Heitor do Prazeres), “Fale Mal… Mas Fale de Mim” (Ataulfo Alves e Marino Pinto), “Brigamos Outra Vez” (Wilson Batista e Marino Pinto), “Saia do Caminho” (Custódio Mesquita e Evaldo Rui) e “Camisa Amarela”, de Ary Barroso, que certa vez criticou a voz da cantora ao dizer que ela desafinava e cantava pelo nariz.

A partir de 1948, com Noel Rosa quase esquecido, Aracy decidiu revisitar a obra do poeta com apresentações antológicas na famosa boate Vogue, no Rio, que posteriormente viraram discos e ajudaram a ecoar a poesia do autor às novas gerações. Em 1950, a cantora reduziu o ritmo de shows e passou a morar em São Paulo, onde viveu até 1962.

Em 1968 gravou “A Voz do Morto”, do tropicalista Caetano Veloso, que entrou para um compacto-simples produzido para a Bienal do Samba daquele ano. “Essa música é uma coisa meio tétrica, um negócio pra tocar em castelo estranho”, disse a cantora no programa de entrevistas Vox Populi, da TV Cultura.

Um ano depois, participou do show “Que Matavilha”, com Toquinho, Jorge Benjor, Paulinho da Viola, Trio Mocotó e Trio do Luiz Melo. Apresentado no Teatro Cacilda Becker, o espetáculo teve a direção do amigo Fernando Faro.

Tida por Paulinho da Viola como a maior cantora de samba, no final dos anos 70 Aracy esbarrou no rock, quando se apresentou ao lado do grupo Joelho de Porco, em espetáculo apresentado no Teatro Célia Helena, onde interpretaram Noel Rosa, Antônio Maria e Chico Buarque, entre outros nomes.

A JURADA

Começou a trabalhar como jurada nos programas do Chacrinha e do Bolinha, até ser contratada em 1975 para o “Show de Calouros” de Silvio Santos, atração que a tornou uma das figuras mais populares da TV pela irreverência e pelo deboche com que julgava os aspirantes a artistas.

Aracy era direta e não amenizava nas críticas nem mesmo calouros mirins, que recebiam palavras duras sobre suas performances.

Quando perguntada sobre ter abdicado da profissão de cantora pela de jurada de TV, respondia: “Melhor ser jurada do que ficar em casa fazendo tricô”.

]]>
0
Alberto Dines escreveu mais de 1.000 textos para a Folha em 3 décadas; leia 5 https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/05/22/alberto-dines-escreveu-mais-de-1-000-textos-para-a-folha-em-3-decadas-leia-5/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/05/22/alberto-dines-escreveu-mais-de-1-000-textos-para-a-folha-em-3-decadas-leia-5/#respond Tue, 22 May 2018 23:38:44 +0000 https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/Dines__blog-320x213.jpg http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/?p=9582 O jornalista Alberto Dines, morto nesta terça-feira (22), aos 86 anos, em razão de problemas respiratórios, escreveu mais de mil textos para a Folha nas décadas de 70, 80 e 90. O Blog do Acervo Folha traz aqui uma seleção de cinco textos de Alberto Dines durante essa trajetória no jornal.

1 – A primeira vez

Dines estreou na Folha em 2 de julho de 1975, com o texto “Vencedores e vencidos”, em que criticava a absolvição do senador Wilson Campos em caso de quebra de decoro no caso envolvendo a Cotonificio Moreno.

Leia : “Vencedores e vencidos”.

2- A primeira coluna

Intitulada Jornal dos Jornais, a coluna assinada por Dines funcionou como uma espécie de ombusdman, avaliando a atuação da imprensa.

Leia: “Jornal dos Jornais: A distensão é para todos”.

3- A primeira sanção

Em 18 de setembro de 1977, consequência da censura exercida pelo governo militar sobre a Folha, no caso Diaféria, a coluna Jornal dos Jornais deixava de ser publicada.

Veja aqui como ficou a página.

4- A lição

Em 21 de novembro de 1998, Dines escreve sobre os perigos a que estava sujeito o jornalismo, com advento da internet.

Leia: “Por um jornalismo humanista”.

5- A última crítica

Em seu último texto na Folha, Dines afirmou que os temporais que assolavam São Paulo evidenciam o mar de lama da gestão pública da cidade.

Leia: “Os homens e suas cidades”.

]]>
0
1968 – A OITAVA BOMBA: Explosão destrói banheiro de Centro de Alistamento da Força Pública https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/05/18/1968-a-oitava-bomba-explosao-destroi-banheiro-de-centro-de-alistamento-da-forca-publica/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/05/18/1968-a-oitava-bomba-explosao-destroi-banheiro-de-centro-de-alistamento-da-forca-publica/#respond Fri, 18 May 2018 10:00:31 +0000 https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/FORCAS-320x213.jpg http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/?p=9566 Fim de noite de um sábado, 18 de maio de 1968, e mais uma bomba (a oitava em dois meses) foi detonada em São Paulo. Desta vez, ela foi jogada no Centro de Alistamento da Força Pública.

O artefato explodiu às 23h no banheiro do prédio, localizado na rua Jorge Miranda, número 74, na Luz, em São Paulo, mas não provocou vítimas.

Da série de sete explosões ocorridas na cidade anteriormente, seis ocorreram de noite ou de madrugada: na Bolsa de Valores de São Paulo, em um ônibus depois do aumento da passagem, na casa de um ex-procurador do estado, na sede do jornal O Estado de S.Paulo, no quartel-general da Força Pública, no Consulado dos Estados Unidos.

A outra explosão ocorreu no fim de tarde, às 17h45, em um prédio vizinho ao 2º Exército.

As histórias dessas explosões que intrigavam a ditadura militar (que em 1968 estava em seu quarto ano) estão sendo recontadas agora pelo Banco de Dados no Blog do Acervo Folha.

Governos, Exército, Polícia Federal, Dops (Departamento de Ordem Política e Social), Força Pública tentavam impedir ações de guerrilhas urbanas naquele período.

Clique aqui e confira o mapa das explosões em São Paulo em 1968

Versões desencontradas 

A bomba no Centro de Alistamento foi cercada de mistério e de versões desencontradas das autoridades.

A Força Pública informou que a explosão deslocou a porta do banheiro, mas um tenente revelou também que o vaso sanitário foi destruído, partido em vários pedaços, e que ficou um buraco no chão.

Os jornalistas não tiveram acesso ao local da explosão.

Outro ponto que chamou a atenção foi o fato de o sargento de plantão ter atendido a um telefonema, bem na hora do estouro, de uma ligação feita por engano.

Pedaços de papel grosso encontrados no local levaram inicialmente as autoridades a dizer que acreditavam que se tratava de uma dessas bombas soltadas em festas juninas, porém das mais potentes, e que a ação seria apenas uma brincadeira.

Só que essa versão foi vista com desconfiança por um tenente por achar que a bomba era muito forte.

O Centro de Alistamento era um lugar frequentado por civis, e as crianças costumavam jogar futebol no pátio.

Detenção

No dia seguinte da ação, domingo (19), um homem chegou a ser detido na rua Major Quedinho, no centro. Ele falava alto sobre bombas e dizia ter mapas que indicariam onde seriam as próximas explosões em São Paulo.

Depois de ser levado à delegacia, foi logo liberado. As autoridades concluíram que o homem estava embriagado e que os mapas, mal feitos, não estavam ligados a explosões nem tinham nenhum valor.

Não era brincadeira

Na segunda-feira (20), a Polícia Técnica contrariou a versão de “bomba junina”, informando que o artefato havia sido feito com canos e com dinamite, semelhante ao jogado na Bolsa de Valores, no dia 15 de maio. Portanto a potência não era pequena.

Novamente, os autores do ataque não foram identificados.

 

Veja também:

1968 – A PRIMEIRA BOMBA: Explosão no Consulado dos EUA deixa feridas abertas até hoje

1968 – A SEGUNDA BOMBA: Depois de alarme na Polícia Federal, explosão atinge coração da Força Pública

1968 – A TERCEIRA BOMBA: Explosão endereçada ao 2º Exército fere 2 pessoas

]]>
0
1968 – A SÉTIMA BOMBA: Explosão na Bolsa de Valores de São Paulo arrebenta 59 vidraças https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/05/15/1968-a-setima-bomba-explosao-na-bolsa-de-valores-de-sao-paulo-arrebenta-59-vidracas/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/05/15/1968-a-setima-bomba-explosao-na-bolsa-de-valores-de-sao-paulo-arrebenta-59-vidracas/#respond Tue, 15 May 2018 10:30:53 +0000 https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/OU_Image100201-F-320x213.jpg http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/?p=9548 Um dos símbolos do capital financeiro, a Bolsa de Valores de São Paulo foi atingida por uma bomba às 22h de 15 de maio de 1968. Tratava-se da sétima explosão na cidade, em um período de dois meses, em um conturbado ano.

A ação arrebentou 59 vidraças, mas não houve vítima. A entidade funcionava, à época, no edifício da Secretaria de Agricultura, localizado no Pateo do Collegio, próximo à Central da Polícia. Ninguém foi preso.

“Só pode ser um ato visando fins propagandísticos, uma vez que, a essa hora da noite, não há ninguém no prédio”, disse o então presidente da Bolsa de Valores, Osorio de Oliveira Sobrinho.

As histórias de bombas detonadas em São Paulo em 1968 estão sendo recontadas agora pelo Banco de Dados no Blog do Acervo Folha.

Naquele ano, mais de 20 explosões desafiaram os governos federal e estadual, o Exército, a Polícia Federal, o Dops (Departamento de Ordem Política e Social), a Força Pública, delegacias da cidade e autoridades.

Era o quarto ano da ditadura militar no Brasil, e as guerrilhas urbanas estavam atuantes.

Clique aqui e confira o mapa das explosões em São Paulo em 1968

15 de maio de 1968

Quando a bomba explodiu na Bolsa de Valores, dois policiais da radiopatrulha estavam com o carro estacionado no viaduto da rua Boa Vista, a aproximadamente 100 metros do local.

Eles escutaram o barulho e pensaram, primeiramente, que eram estouro de um pneu. No entanto viram a fumaça. Como era perto, foram de marcha à ré ao prédio da explosão.

Ao chegar, os policiais foram conferir o que realmente tinha acontecido e se alguém tinha se ferido.

Depois disso, eles iniciaram a busca por suspeitos e encontraram uma testemunha, um garoto de 17 anos correndo.

O rapaz trabalhava como mensageiro de uma empresa telegráfica e, à noite, estudava arte culinária no Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial). Ele entrou na viatura e explicou que estava correndo de medo.

Contou que tinha saído da escola e estava andando em direção ao Parque Dom Pedro para pegar um ônibus e voltar para sua casa, em Engenheiro Goulart (zona leste).

Os estilhaços da bomba são recolhidos e o local fotografado pelos especialistas (Reprodução/Folhapress)

Conflito de versões

A versão inicial divulgada pela imprensa era a de que o garoto tinha declarado que um sujeito alto, magro, cabelos grisalhos, vestindo uma japona, com uma pasta, andava perto da entrada da Bolsa e que, momentos antes da explosão, o homem teria começado a correr em fuga.

O rapaz teria também declarado aos policiais ter visto o suspeito se encontrando com outros dois companheiros na ladeira da rua General Carneiro.

No dia seguinte, o garoto prestou depoimento de duas horas no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e negou essas informações.

Afirmou que não viu o suspeito de perto, não sabia informar a roupa exata nem dizer se o homem estava acompanhado ou sozinho.

“Na rua Alvares Penteado, um homem alto, de roupa esporte, passou por mim. Chovia, estava escuro, o homem sumiu. Pouco depois, quando comecei a descer a General Carneiro, ouvi a explosão e corri ladeira abaixo”, disse a testemunha.

Depois, ele mudou novamente a versão e afirmou ter visto o homem correndo na mesma rua.

“Vi um homem correr quando a bomba explodiu, mas sei lá se era terrorista ou estava correndo de medo como eu”, afirmou o garoto.

Assim como nas explosões anteriores no ano, a polícia ficou sem muitas pistas sobre os autores dos ataques, e o caso entrou no rol das “bombas misteriosas”.

Explosões parecidas

No entanto o general Silvio Correia de Andrade, delegado na Polícia Federal, acreditava que a série de atentados em 1968 eram promovidos pelo mesmo grupo.

“O processamento das explosões é o mesmo. Colocam as bombas em lugares ermos, altas horas da noite”, disse.

“A natureza dos explosivos também é a mesma. São de fabricação caseira, quase sempre canos de ferros com luvas para engates contendo pólvora ou dinamite. Os estilhaços são muito parecidos, em todos os casos. Dá a impressão de ser uma continuação de uma série de atentados iniciada com a explosão no Consulado Americano”, declarou.

 

Veja também:

1968 – A PRIMEIRA BOMBA: Explosão no Consulado dos EUA deixa feridas abertas até hoje

1968 – A SEGUNDA BOMBA: Depois de alarme na Polícia Federal, explosão atinge coração da Força Pública

1968 – A TERCEIRA BOMBA: Explosão endereçada ao 2º Exército fere 2 pessoas

]]>
0
OUTROS 13 DE MAIO: Dona Maria, 107 anos, se lembrava do 13 de Maio de 1888 https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/05/13/outros-13-de-maio-dona-maria-107-anos-ainda-lembra-do-13-de-maio-de-1888/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/05/13/outros-13-de-maio-dona-maria-107-anos-ainda-lembra-do-13-de-maio-de-1888/#respond Sun, 13 May 2018 10:00:18 +0000 https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/maria-320x213.jpg http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/?p=9452 Quando do centenário da Abolição da Escravatura, a Folha publicou uma série de reportagens. No dia 9 de maio de 1988, Dona Maria foi personagem.

Banco de Dados resgata no Blog Acervo Folha em uma série referente aos 130 anos da abolição, completados neste domingo (13).

Confira abaixo a íntegra do texto.

 

9.mai.1988

MARIA, 107, AINDA SE LEMBRA DO 13 DE MAIO DE 1888

Faltam quatro dias para o Treze de Maio de 1988, data que marca os cem anos da Abolição da Escravatura. Dona Maria (foto) passou seus primeiros anos de vida na fazenda em que os pais eram escravos.

Hoje, na casa de madeira onde vive em São Paulo rodeada pela família, ela controla 5 dos 12 filhos que teve, 12 netos e 10 bisnetos.

A educação dos mais novos é a sua preocupação constante: “Ninguém manda mais neles.”

Maria Ellis da Silva recorda a época em que amarrava seus filhos –mais tarde, os netos– com uma cordinha na bananeira ou no pé da mesa para ensiná-los a obedecer.

Na primeira memória de seus 107 anos, há muitas cenas esquecidas. Mas um fato, o dia 13 de maio de 1888, ficou gravado.

Quando o dono da fazenda Pau d’Alho, em São Carlos do Pinhal (SP), chamou os negros e disse que estavam libertos, “a negra Laura começou a chorar”,  com medo de passar fome e não ter mais onde dormir.

Incomodados com a tristeza num momento tão esperado, os outros negros xingaram e bateram na negra assustada.

 

OUTROS 13 DE MAIO: Darcy Ribeiro escreveu que escravidão era sustentáculo do império: “Morra a princesa”

OUTROS 13 DE MAIO: Ricupero destacou relação entre escravidão e terra

OUTROS 13 DE MAIO: Raquel Rolnik explica a formação de territórios negros em São Paulo

OUTROS 13 DE MAIO: Milton Santos cobrou reação ao apartheid à brasileira

 

 

[+] Conheça o site do Banco de Dados
http://www1.folha.uol.com.br/banco-de-dados/

[+] Siga-nos no Twitter
https://twitter.com/BD_Folha

[+] Curta a página Saiu no NP
https://www.facebook.com/Saiu-no-NP-168161556714765/

[+] Curta o Acervo Folha no Facebook
https://www.facebook.com/acervofolha/

]]>
0
OUTROS 13 DE MAIO: Milton Santos cobrou reação ao apartheid à brasileira https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/05/12/outros-13-de-maio-milton-santos-cobrou-reacao-ao-apartheid-a-brasileira/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/05/12/outros-13-de-maio-milton-santos-cobrou-reacao-ao-apartheid-a-brasileira/#respond Sat, 12 May 2018 10:30:41 +0000 https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/Milton-Santos-320x213.jpg http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/?p=9430 Ao analisar a situação dos negros no país, o geógrafo Milton Santos defendeu em artigo, publicado em 7 de maio de 2000, que era preciso reagir urgentemente a uma forma de apartheid à brasileira.

Segundo Milton, não era possível esconder a existência de diferenças sociais, econômicas estruturais e seculares. Afirmou que o negro no Brasil era, com frequência, objeto de um olhar enviesado.

“A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta”, escreveu.

Esse é mais um texto que o Banco de Dados está republicando no Blog Acervo Folha na série Outros 13 de Maio que vai até este domingo (13), quando serão completados 130 anos da abolição. Leia o artigo completo abaixo:

 

 

7.mai.2000

Ser negro no Brasil hoje

Ética enviesada da sociedade branca desvia enfrentamento do problema negro 

*Milton Santos

Há uma frequente indagação sobre como é ser negro em outros lugares, forma de perguntar, também, se isso é diferente de ser negro no Brasil.

As peripécias da vida levaram-nos a viver em quatro continentes, Europa, Américas, África e Ásia, seja como quase transeunte, isto é, conferencista, seja como orador, na qualidade de professor e pesquisador.

Desse modo, tivemos a experiência de ser negro em diversos países e de constatar algumas das manifestações dos choques culturais correspondentes. Cada uma dessas vivências foi diferente de qualquer outra, e todas elas diversas da própria experiência brasileira.

As realidades não são as mesmas. Aqui, o fato de que o trabalho do negro tenha sido, desde os inícios da história econômica, essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes deu-lhe um papel central na gestação e perpetuação de uma ética conservadora e desigualitária.

Os interesses cristalizados produziram convicções escravocratas arraigadas e mantêm estereótipos que ultrapassam os limites do simbólico e têm incidência sobre os demais aspectos das relações sociais. Por isso, talvez ironicamente, a ascensão, por menor que seja, dos negros na escala social sempre deu lugar a expressões veladas ou ostensivas de ressentimentos (paradoxalmente contra as vítimas).

Ao mesmo tempo, a opinião pública foi, por cinco séculos, treinada para desdenhar e, mesmo, não tolerar manifestações de inconformidade, vistas como um injustificável complexo de inferioridade, já que o Brasil, segundo a doutrina oficial, jamais acolhera nenhuma forma de discriminação ou preconceito.

 

Milton Santos posa para foto, em sua casa (Flávio Florido – 27.abr.2000/Folhapress)

500 anos de culpa

Agora, chega o ano 2000 e a necessidade de celebrar conjuntamente a construção unitária da nação. Então é ao menos preciso renovar o discurso nacional racialista. Moral da história: 500 anos de culpa, 1 ano de desculpa.

Mas as desculpas vêm apenas de um ator histórico do jogo do poder, a Igreja Católica! O próprio presidente da República [Fernando Henrique Cardoso] considera-se quitado porque nomeou um bravo general negro para a sua Casa Militar e uma notável mulher negra para a sua Casa Cultural. Ele se esqueceu de que falta nomear todos os negros para a grande Casa Brasileira.

Por enquanto, para o ministro da Educação, basta que continuem a frequentar as piores escolas e, para o ministro da Justiça, é suficiente manter reservas negras como se criam reservas indígenas.

A questão não é tratada eticamente. Faltam muitas coisas para ultrapassar o palavrório retórico e os gestos cerimoniais e alcançar uma ação política consequente. Ou os negros deverão esperar mais outro século para obter o direito a uma participação plena na vida nacional?

Que outras reflexões podem ser feitas, quando se aproxima o aniversário da Abolição da Escravatura, uma dessas datas nas quais os negros brasileiros são autorizados a fazer, de forma pública, mas quase solitária, sua catarse anual?

 

OUTROS 13 DE MAIO: Darcy Ribeiro escreveu que escravidão era sustentáculo do império: “Morra a princesa”

 

Hipocrisia permanente

No caso do Brasil, a marca predominante é a ambivalência com que a sociedade branca dominante reage, quando o tema é a existência, no país, de um problema negro. Essa equivocação é, também, duplicidade e pode ser resumida no pensamento de autores como Florestan Fernandes e Octavio Ianni, para quem, entre nós, feio não é ter preconceito de cor, mas manifestá-lo.

Desse modo, toda discussão ou enfrentamento do problema torna-se uma situação escorregadia, sobretudo quando o problema social e moral é substituído por referências ao dicionário.

Veja-se o tempo politicamente jogado fora nas discussões semânticas sobre o que é preconceito, discriminação, racismo e quejandos, com os inevitáveis apelos à comparação com os norte-americanos e europeus.

Às vezes, até parece que o essencial é fugir à questão verdadeira: ser negro no Brasil o que é?

Talvez seja esse um dos traços marcantes dessa problemática: a hipocrisia permanente, resultado de uma ordem racial cuja definição é, desde a base, viciada.

Ser negro no Brasil é frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo. Essa ambiguidade marca a convivência cotidiana, influi sobre o debate acadêmico e o discurso individualmente repetido é, também, utilizado por governos, partidos e instituições.

Tais refrões cansativos tornam-se irritantes, sobretudo para os que nele se encontram como parte ativa, não apenas como testemunha. Há, sempre, o risco de cair na armadilha da emoção desbragada e não tratar do assunto de maneira adequada e sistêmica.

 

OUTROS 13 DE MAIO: Ricupero destacou relação entre escravidão e terra

 

Marcas visíveis

Que fazer? Cremos que a discussão desse problema poderia partir de três dados de base: a corporeidade, a individualidade e a cidadania.

A corporeidade implica dados objetivos, ainda que sua interpretação possa ser subjetiva; a individualidade inclui dados subjetivos, ainda que possa ser discutida objetivamente.

Com a verdadeira cidadania, cada qual é o igual de todos os outros e a força do indivíduo, seja ele quem for, iguala-se à força do Estado ou de outra qualquer forma de poder: a cidadania define-se teoricamente por franquias políticas, de que se pode efetivamente dispor, acima e além da corporeidade e da individualidade, mas, na prática brasileira, ela se exerce em função da posição relativa de cada um na esfera social.

Costuma-se dizer que uma diferença entre os Estados Unidos e o Brasil é que lá existe uma linha de cor e aqui não. Em si mesma, essa distinção é pouco mais do que alegórica, pois não podemos aqui inventar essa famosa linha de cor. Mas a verdade é que, no caso brasileiro, o corpo da pessoa também se impõe como uma marca visível e é frequente privilegiar a aparência como condição primeira de objetivação e de julgamento, criando uma linha demarcatória, que identifica e separa, a despeito das pretensões de individualidade e de cidadania do outro.

Então, a própria subjetividade e a dos demais esbarram no dado ostensivo da corporeidade cuja avaliação, no entanto, é preconceituosa.

Milton Santos gesticula durante entrevista (Jarbas Oliveira-31.jan.2001./Folhapress)

A individualidade é uma conquista demorada e sofrida, formada de heranças e aquisições culturais, de atitudes aprendidas e inventadas e de formas de agir e de reagir, uma construção que, ao mesmo tempo, é social, emocional e intelectual, mas constitui um patrimônio privado, cujo valor intrínseco não muda a avaliação extrínseca, nem a valoração objetiva da pessoa, diante de outro olhar.

No Brasil, onde a cidadania é, geralmente, mutilada, o caso dos negros é emblemático.

Os interesses cristalizados, que produziram convicções escravocratas arraigadas, mantêm os estereótipos, que não ficam no limite do simbólico, incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais. Na esfera pública, o corpo acaba por ter um peso maior do que o espírito na formação da socialidade e da sociabilidade.

Peço desculpas pela deriva autobiográfica. Mas quantas vezes tive, sobretudo neste ano de comemorações, de vigorosamente recusar a participação em atos públicos e programas de mídia ao sentir que o objetivo do produtor de eventos era a utilização do meu corpo como negro –imagem fácil– e não as minhas aquisições intelectuais, após uma vida longa e produtiva.

Sem dúvida, o homem é o seu corpo, a sua consciência, a sua socialidade, o que inclui sua cidadania. Mas a conquista, por cada um, da consciência não suprime a realidade social de seu corpo nem lhe amplia a efetividade da cidadania.

Talvez seja essa uma das razões pelas quais, no Brasil, o debate sobre os negros é prisioneiro de uma ética enviesada. E esta seria mais uma manifestação da ambiguidade a que já nos referimos, cuja primeira consequência é esvaziar o debate de sua gravidade e de seu conteúdo nacional.

 

OUTROS 13 DE MAIO: Raquel Rolnik explica a formação de territórios negros em São Paulo

 

Olhar enviesado

Enfrentar a questão seria, então, em primeiro lugar, criar a possibilidade de reequacioná-la diante da opinião, e aqui entra o papel da escola e, também, certamente, muito mais, o papel frequentemente negativo da mídia, conduzida a tudo transformar em “faits-divers”, em lugar de aprofundar as análises.

A coisa fica pior com a preferência atual pelos chamados temas de comportamento, o que limita, ainda mais, o enfrentamento do tema no seu âmago. E há, também, a displicência deliberada dos governos e partidos, no geral desinteressados do problema, tratado muito mais em termos eleitorais que propriamente em termos políticos. Desse modo, o assunto é empurrado para um amanhã que nunca chega.

Ser negro no Brasil é, pois, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta. Logo, tanto é incômodo haver permanecido na base da pirâmide social quanto haver “subido na vida”.

Pode-se dizer, como fazem os que se deliciam com jogos de palavras, que aqui não há racismo (à moda sul-africana ou americana) ou preconceito ou discriminação, mas não se pode esconder que há diferenças sociais e econômicas estruturais e seculares, para as quais não se buscam remédios.

A naturalidade com que os responsáveis encaram tais situações é indecente, mas raramente é adjetivada dessa maneira. Trata-se, na realidade, de uma forma do apartheid à brasileira, contra a qual é urgente reagir se realmente desejamos integrar a sociedade brasileira de modo que, num futuro próximo, ser negro no Brasil seja, também, ser plenamente brasileiro no Brasil.

 

*Milton Santos (1926-2001) foi geógrafo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, consultor da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da OEA (Organização dos Estados Americanos) e da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura). Escreveu mais de 40 livros, publicados no Brasil, França, Reino Unido, Portugal, Japão e Espanha.

 

 

[+] Conheça o site do Banco de Dados
http://www1.folha.uol.com.br/banco-de-dados/

[+] Siga-nos no Twitter
https://twitter.com/BD_Folha

[+] Curta a página Saiu no NP
https://www.facebook.com/Saiu-no-NP-168161556714765/

[+] Curta o Acervo Folha no Facebook
https://www.facebook.com/acervofolha/

]]>
0
OUTROS 13 DE MAIO: Raquel Rolnik explica a formação de territórios negros em São Paulo https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/05/10/outros-13-de-maio-raquel-rolnik-explica-a-formacao-de-territorios-negros-em-sao-paulo/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/05/10/outros-13-de-maio-raquel-rolnik-explica-a-formacao-de-territorios-negros-em-sao-paulo/#respond Thu, 10 May 2018 10:30:18 +0000 https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/Raquel-Rolnik-320x213.jpg http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/?p=9359

A trajetória histórica da comunidade negra pelas regiões de São Paulo foi descrita pela arquiteta e urbanista Raquel Rolnik em artigo, publicado no suplemento Folhetim, da Folha, em 28 de setembro de 1986.

Ela informou que, em 1854, São Paulo tinha 30 mil habitantes, e um terço da população era escrava. Relatou como e onde eles viviam e apontou a intensa redefinição territorial sofrida ao longo dos anos.

Segundo Raquel, a história desta comunidade é marcada pela estigmatização dos territórios negros da cidade.

“Se no mundo escravocrata devir negro era sinônimo de sub-humanidade e barbárie, na República do trabalho livre, livre virou marca de marginalidade. O estigma se formulou a partir de um discurso etnocêntrico e uma pratica repressiva: do olhar vigilante do senhor na senzala ao pânico dos sanitaristas em visita ao cortiço; do registro esquadrinhador do planejador urbano à violência das viaturas policiais nas vilas e favelas”, escreveu.

Leia abaixo o artigo completo, que o Banco de Dados resgata no Blog Acervo Folha em uma série referente aos 130 anos da abolição que serão completados domingo (13).

 

28.set.1986

Territórios negros em São Paulo

* Raquel Rolnik

A história da comunidade negra de São Paulo, desde sua libertação, foi sempre marcada pela estigmatização de seus territórios na cidade

 

História

Senzalas e quilombos marcaram a história da comunidade negra no Brasil. Esta principia com a escravidão de africanos em terras brasileiras, parte de um empreendimento europeu de conquista mercantil de um novo território: Novo Mundo. O Brasil fazia então parte de um circuito que ligava os continentes europeu, africano e americano.

Produzindo matérias primas tropicais para exportar e consumindo escravos, a colônia portuguesa intensificava a circulação de mercadorias, acelerando a acumulação de capitais na Europa, centro de controle destes fluxos comerciais. Na lógica do projeto mercantilista de colonização, a utilização do trabalho escravo respondia a dupla necessidade: de alimentar o tráfico de africanos, um dos setores mais rentáveis do comércio colonial, e de subjugar uma mão de obra que, se não fosse cativa, poderia simplesmente ocupar um pedaço de terra, já que esta era abundante e inexplorada no Novo Mundo.

A relação senhor-escravo foi assim instituída, tendo a princípio europeus como senhores e africanos como escravos.

Casa grande e senzala foi uma forma de espacialização desta relação. Projetada pelos fazendeiros envolvidos no empreendimento agrário-exportador, a senzala é o espaço de confinamento do escravo, prisioneiro de uma condição sub-humana. Sua arquitetura expressa a vontade senhorial –fileira de quartos sem janela nem mobília se fechando em pátios de onde se poderia vigiar e comandar os escravos.

Artigo de Raquel Rolnik no suplemento Folhetim, da Folha

Para os negros e mulatos trazidos ao Brasil pela máquina comercial europeia, a senzala representava o território da submissão, fruto da brutalidade dos senhores. Porém não era só o olhar vigilante do senhor e violência do trabalho escravo que estruturava o cotidiano dos habitantes da senzala –foi também no interior desta arquitetura que floresceu e se desenvolveu um devir negro, afirmação da vontade de solidariedade e auto preservação que fundamentava a existência de uma comunidade africana em terras brasileiras.

O tráfico –desterritorializando milhões de africanos– implantava no Novo Mundo a segregação entre brancos e negros. O confinamento na nova terra era a experiência capaz de transformar um grupo –cujo único laço era alguma ancestralidade africana– em comunidade; África era o continente da memória coletiva, que se transmitia através de linguagens conhecidas desde os lugares de origem ou adquiridas no contato com os europeus e índios. Assim, se foi tecendo um território negro no Brasil, continente de um devir coletivo que marca a constituição de uma comunidade afro-brasileira.

Um dos suportes mais sólidos deste devir foi, desde a senzala, o próprio corpo, espaço de existência, continente e limite do escravo. Arrancando do lugar de origem o despossuído de qualquer bem, era o escravo portador –nem mesmo proprietário– de seu corpo. Era através dele que, na senzala, o escravo afirmava e celebrava sua ligação comunitária; era através dele também que a memória coletiva pôde se transmitir, ritualizada e festejada. Foi assim que o pátio da senzala, símbolo da segregação e controle, transformou-se em terreiro, lugar de celebração das formas de ligação da comunidade.

No entanto, o limite da autonomia deste território estava em sua própria definição –o corpo do escravo era propriedade do senhor. Só a fuga e libertação era capaz de romper este limite, devolvendo ao homem escravo o poder sobre sua própria vida. Daí nasce o quilombo, zona libertada da escravidão.

Escravos nas cidades

A história dos quilombos brasileiros é pouco conhecida. As poucas histórias de quilombo de que a historiografia se ocupou se referem aos territórios negros de um mundo rural, em plena escravidão.

Mas o mundo da monocultura escravistas não era somente rural –embora o centro da produção fossem as fazendas–, uma rede de cidades se desenvolveu. Eram cidades de mercadores, envolvidos em grandes tráfegos internacionais –como as cidades/porto da costa Atlântica, ou cidades interiores, pontas de lança para a conquista do território, cruzamento de rotas comercias, centros redistribuidores

Assim como nas fazendas, os trabalhos mecânicos nas cidades também eram realizados por escravos e assim foram se constituindo territórios negros urbanos, espaço de moradia, trabalho, encontro e rito de comunidade. Enquanto espaços de submissão ou autonomia, senzalas e quilombos urbanos balizavam a relação da comunidade negra com a cidade onde estavam inseridos.

Senzalas e quilombos –que papel e que destino tiveram na abolição da escravidão?

São Paulo

Uma visão da cidade de São Paulo no momento da abolição nos fornece um “flash” desta história.

Às vésperas da abolição, o eixo dinâmico do setor agrário exportador da economia brasileira estava na cafeicultura do Sudeste. Sobretudo após a extinção do tráfico, foi para esta região que se deslocou a maior parte dos escravos do país, que tendiam a se concentrar nas áreas mais produtivas.

A partir do último quarto do século 19, São Paulo era a cidade-centro da expansão cafeeira. A crise da escravidão se agilizava no momento em que a cafeicultura paulista, numa forma voraz de terra e homem avançava em direção ao Oeste em ritmo de ferrovia. Antes do “boom” cafeeiro, São Paulo era um centro comercial modesto.

Posto avançado no planalto para a exploração de terra e apresamento dos índios no início da colonização, São Paulo se desenvolveu como entrocamento de rotas comerciais em um circuito econômico complementar ao setor agrário exportador. Em 1854, com 30 mil habitantes, 1/3 da população paulista era escrava. A maior parte destes escravos era encarregada do serviço doméstico e habitava as casas senhoriais. Em São Paulo de 1850, senhores de escravos moravam em chácaras ao redor da cidade ou em lotes urbanos contíguos, os sobrados das ruas do centro.

As chácaras paulistanas reeditavam o projeto da senzala rural –a lavanderia, animais, escravos localizavam-se fora do edifício principal, junto a um pátio.

Nos sobrados, a senzala é os fundos da casa, área do trabalho doméstico. Nesta região –varanda, cozinha e quintal, ficavam as mulheres e escravos envolvidos na produção doméstica. A varanda era também a sala de viver, local onde se faziam as refeições e a sesta. A casa era basicamente um lugar de permanência e clausura das mulheres; os homens passavam a maior parte do tempo nas ruas, ficando em casa apenas nos horários de refeição e sono.

 

OUTROS 13 DE MAIO: Darcy Ribeiro escreveu que escravidão era sustentáculo do império: “Morra a princesa”

 

A rua era também território dos escravos. A contiguidade dos sobrados nas zonas centrais das cidades contribuía para que fosse intensa a circulação de escravos domésticos: buscando águas nos chafarizes, indo ou voltando com a roupa ou latas de excrementos para os rios, carregando cestas nas áreas de mercado, transportando objetos de um ponto a outro da cidade.

Na ruas da Sé e da Santa Efigênia, os escravos domésticos se misturavam aos de ganho: no final do período escravocrata era cada vez mais frequente os senhores alugarem os serviços de seus escravos por hora, dia ou mês. Eram escravos de ofício (carpinteiros, pedreiro, ferreiro, etc) que “empreitavam” seus serviços ou, mais frequentemente ainda, vendedores e carregadores que pagavam aos senhores um parte da féria diária.

Ser escravo de ganho era para o escravo um dos caminhos para a compra da alforria na medida em que, paga a féria devido ao senhor, algum excedente poderia sobrar em sua mão. Aos libertados pela compra da própria alforria somara-se os filhos de escrava com senhor –aos quais, às vezes, este decidia alforriar– e os libertos por vontade senhorial expressa em testamento. Assim, o número de libertos na cidade crescia aceleradamente nas últimas décadas da escravidão: em 1872, dos 11.679 negros e mulatos de São Paulo –um terço da população da cidade– apenas 3.829 eram escravos. Os escravos e libertos que viviam em São Paulo no final da escravidão definiam um território negro nas ruas do centro.

Um dos pontos destes territórios eras as irmandades, organizações religiosas negras. Nossa Senhora do Rosário na praça Antônio Prado ou Nossa Senhora dos Remédios, na Liberdade, era onde, em dia de festa cristã, se batucava e dançava. Além de ponto de encontro e práticas rituais, o espaço de irmandades era muitas vezes local de habitação de libertos. Em cômodos contíguos de porta e janela, ocultando assentamentos de orixá sob imagens de santo, moravam negros e mulatos libertos em um dos quilombos da cidade.

Além de quilombos, as irmandades negras também organizavam fundos de emancipação que libertavam escravos, através da compra de alforrias.

Outro ponto de encontro da comunidade negra eram os mercados. Quitanda e cangalha –principais ocupações de escravos de ganho ou libertos– envolviam a passagem pelo mercado. As quitandeiras, que enfileiravam seus baús de folha, caldeirões e fogareiros pela cidade, se abasteciam no mercado. Ali, nos ervários africanos, os pais de santo compravam também e, trabalhando com folhas e sementes, cuidavam da saúde física e mental da comunidade. Por ali passavam os vendedores e os escravos domésticos circulavam –libertos e escravos conspiravam nos mercados.

Habitações coletivas

Viver em porões ou cômodos contíguos em habitações coletivas era a forma de moradia acessível aos libertos. Única opção de moradia barata no centro da cidade, a habitação coletiva tem uma arquitetura que implica num cotidiano em que, na maior parte do tempo, as atividades relacionada ao morar acontecem em um espaço semi-público, intermediário entre o interior da casa e o anonimato da rua –os pátios e quintais coletivos.

A arquitetura destas habitações coletivas se assemelha ao “compound” (ou “collectivé”), habitação clânica africana presente em várias zonas urbanizadas da África Ocidental. Essa é a forma, por exemplo, das casas das “tias” negras, matriarcas chefes de clã, ou de terreiros, onde pais e filhos moram coletivamente, constituindo famílias “de santo”, compostas por indivíduos sem laços de parentesco e transformando os quintais em locais de festa e rito de comunidade. Assim era também a configuração das roças, núcleos negros semi-rurais localizados nas matas em torno das colinas das cidades.

Essas habitações coletivas –cômodos e porões no centro ou pequenas aldeias nas periferias– são quilombos paulistanos no final da escravidão. Territórios negros libertos tiveram um papel importante na desagregação do sistema escravocrata, na medida em que se constituíam em alternativas concretas para a forma de socialização submetida da senzala. Representaram o movimento de libertação dos próprios escravos, que, constituindo, e fazendo proliferar zonas libertas, intensificavam a luta pela abolição.

Mão de obra imigrante

Se para os negros a libertação era uma questão de autonomia, para os senhores a questão era de mão de obra: esta se colocava principalmente para os cafeicultores paulistas. A maior fonte possível para a compra de escravos –o tráfico– estava então sendo desmantelada pela mesma máquina que o havia montado séculos antes –o capital inglês. Agora que lucro não estava mais em fazer mercadorias navegarem pelos mares, era preciso criar mercados locais nos continentes onde estes mares chegavam. Assim, a pressão inglesa pelo fim do tráfico aumentava, até sua extinção final, em meados do século. Quando perceberam a inevitabilidade do processo abolicionista, os fazendeiros/empresários do café paulista logo começaram a pensar na substituição da mão de obra.

A “solução” da questão implicou no deslocamento de milhares de europeus, sobretudo italianos, para as terras paulistas: os colonos imigrantes. Os primeiros foram subsidiados pelo governo de São Paulo e encaminhados até as fazendas, porém cedo a imigração espontânea superou subsidiada e São Paulo italianou-se. A substituição do escravo negro pelo imigrante livre foi acompanhada de um discurso que difundia a solução como alternativa progressista, na medida em que europeus “civilizados e laboriosos” trariam sua cultura para ajudar a desenvolver a nação. A alternativa implicou também a formulação de uma teoria racial –a raça negra estava condenada pela bestialidade da escravidão –e a vinda de imigrantes europeus traria elementos étnicos superiores que, através da miscigenação, poderiam branquear o país, como “uma transfusão de puro e oxigenado sangue de uma raça livre”.

A operação de substituição da mão de obra escrava significou, portanto, a redefinição do lugar do negro na sociedade –de escravo a marginal. Neste movimento de redefinição, o lugar do trabalhador passou a ser ocupado pelo imigrante destituído; assim como o do proprietário de terras e máquinas.

Nesta operação não somente o lugar do trabalhador foi deslocado, mas também também a própria noção de trabalho como escravidão teve que se redefinir. A proposta dos proprietários foi o estabelecimento de uma linha de cor nesta nova configuração social –trabalho de negro é trabalho escravo, trabalho de branco é trabalho livre. Em outras palavras, no discurso da classe dominante, negro livre não servia para trabalhar. A posição de marginalidade do negro em relação a esta nova configuração social seria, então, justificada através da ideia de inferioridade cultural da raça negra, característica responsável pela “inadaptação” dos libertos a uma relação mais moderna de trabalho.

Na cidade de São Paulo, esta formulação implicou numa intensa redefinição territorial. Antes de mais nada, a cidade veria sua população aumentar rapidamente em poucas décadas, fruto principalmente da entrada de imigrantes.

 

OUTROS 13 DE MAIO: Ricupero destacou relação entre escravidão e terra

 

Em 1886, dois anos antes da promulgação da Lei Áurea, que abolia oficialmente a escravidão no país, os “estrangeiros” já começavam a chegar. Nesta data São Paulo é uma cidade de quase 50 mil habitantes e 25% são estrangeiros. A população negra da cidade, já então constituída basicamente por libertos (eram apenas 493 escravos), começa a sofrer um decréscimo, tanto relativo quanto absoluto. Se em 1872 havia em torno de 12 mil negros na cidade, em 1890 eles são menos de 11 mil.

O imigrante europeu substitui tanto os escravos quantos os libertos na posição do trabalhador. As ocupações mecânicas, enobrecidas pelo trabalho livre, passaram a ser exercidas pelos estrangeiros: em 1893, os imigrantes constituíam 80% do pessoal ocupado nas atividades manufatureiras e artesanais da cidade.

Na cidade assim redefinida, o quilombo é marginal –sua presença africana não cabe no projeto de cidade europeia. Isto se manifesta na constituição de um poder urbano que, a partir de 1886, com a promulgação do Código de Posturas Municipal, manifesta o desejo de proibir práticas presentes nos territórios negros da cidade: as quitandeiras devem sair da rua porque “atrapalham o trânsito”, os mercados devem ser transferidos para a periferia, porque “afrontam a cultura e conspurcam a cidade”, os pais de santo não podem mais trabalhar porque são “embusteiros que fingem inspiração por algum ente sobrenatural”.

O projeto de cidade europeia significará também redefinição e deslocamento no espaço da classe dominante. Esta abandona a contiguidade dos sobrados do centro para ocupar loteamentos exclusivos em palacetes neoclássicos: primeiro nos Campos Elíseos, posteriormente na Vila Buarque e Higienópolis e, finalmente, na avenida Paulista.

O novo território da classe dominante, projeto de arquitetos europeus, é uma casa circundada por cinturão de proteção e isolamento –os altos muros/portões/gramados que a separam da rua. Internamente são três regiões: o território familiar público (sala de visitas/vestíbulo/escritório e sala de jantar, espaços “arrumados para visita” que ostentam o tesouro da família); a zona íntima (dormitório e banheiros hierarquizados por sexo e faixas etárias) e zona de serviços e serviçais. Esta última situa-se de certa forma isolada da casa, contígua à cozinha, despensa e quintais. Esta configuração não era muito diferente de uma entrada de serviços, marcadamente separada da entrada social.

O artigo da Raquel na Folha é ilustrado com a imagem da capa da revista Evolução de 1933

Trabalhar como empregado doméstico, habitando edículas dos palacetes, foi desde a abolição uma das poucas opções de atividade para negros e mulatos. O serviço doméstico, exercido principalmente por mulheres, pouco se redefiniu com o fim da escravidão. Na verdade, a senzala como espaço de confinamento e submissão à casa senhorial continuou existindo nas edículas da casa burguesa.

O deslocamento do território da classe dominante acabou por definir novos territórios negros: por um lado, a região do Centro Velho, recém-abandonada, passou a ser mais densamente ocupada sob a forma de casa de cômodos: “encortiçou-se”. Por outro lado, aos pés das novas regiões burguesas, surgiram núcleos de habitação coletiva, onde negros e mulatos ligados ao serviço doméstico na região dos palacetes (lavadeiras, cozinheiras, carregadores) moravam com suas famílias. Este foi um dos movimentos de re-territorialização da comunidade negra que configurou dois dos quilombos de São Paulo pós-abolição: Barra Funda e Bexiga.

A formação da Barra Funda como território negro tem a ver com Campos Elíseos e Higienópolis, mas também esta tem sua formação ligadas à localização dos armazéns da Estrada de Ferro neste bairro. Ser carregador ocasional da Estrada de Ferro era uma das únicas ocupações possíveis para os homens negros na cidade do trabalho livre. Os carregadores do Paulo Chaves –assim era chamado o armazém– eram conhecidos na comunidade e fora dela como os “valentões” e “capoeiras” da Barra Funda. Juntos se deslocavam de São Paulo para Santos para carregar café no porto quando havia trabalho na capital; juntos ficavam na porta dos bailes negros da cidade caso “houvesse qualquer coisa”, ou entravam nas rodas de samba com uma coreografia própria.

No início do século, era a Barra Funda o território mais caracterizadamente negro de São Paulo. Suas habitações coletivas abrigavam várias tias africanas com seus clãs, que praticavam o jongo, macumba ou samba de roda como extensão da própria vida familiar. Estes locais eram habitações coletivas onde moravam famílias extensas e indivíduos sem laços de parentesco e, pouco a pouco, os batuques familiares foram se transformando em cordões de carnaval. Camisa Verde, Cordão do Geraldino ou Campos Elíseos tiveram esta origem e imortalizaram o quilombo da Barra Funda como berço do samba paulista.

A história do Bexiga como território negro começou no século 19, quando lá existiu um quilombo semi-rural, o Saracura. Como a abertura da avenida Paulista, esta região se transformou em zona contígua à área burguesa (como a Barra Funda o era em relação aos Campos Elíseos), local de habitação dos “ajudantes gerais”. Mas o Bexiga se tornou realmente território negro com as grandes reformas de embelezamento da cidade que, na segunda década do século, expulsaram habitações coletivas do Centro Velho.

Estas reformas significaram a reconquista, pela classe dominante, emergente, de um centro encortiçado. O plano da burguesia de cafeicultores, grandes comerciantes, banqueiros e artistas convidados, consistia basicamente em remover tudo o que era considerado marginal do centro da cidade e redesenhá-lo segundo o projeto de um centro de moderna e próspera capital europeia. Assim, ruas foram alargadas, mercados demolidos, praças remodeladas. Tais reformas implicaram, por exemplo, na desapropriação da Igreja e Irmandade Nossa Senhora do Rosário, um dos quilombos importantes da comunidade no século 19. Tratava-se, para a classe no poder, de destruir um centro híbrido (que misturava bancos, cortiços, zonas de prostituição, comércio elegante e mercados em ruas estreitas) e, em seu lugar, edificar um território exclusivo das classes dominantes. Tanto o Bexiga como a liberdade cresceram com a operação limpeza do centro. Nestes bairros, principalmente na década de 20, se configuravam territórios negros importantes com suas escolas de samba, terreiros, times de futebol e salões de baile.

Na Barra Funda, Bexiga e Liberdade, além de certos pontos da Sé, nas primeiras décadas do século, se organizaram também sociedades negras, com atividades culturais e recreativas que envolviam a publicação de jornais, a produção litero-musical e teatral, passeios piquenique e bailes de fim de semana em salões alugados.

Ainda neste período o espaço de moradia da comunidade era principalmente os cômodos alugados em habitações coletivas. Estas habitações –e os bairros onde se estruturaram território negros no início do século (20)– jamais foram exclusivamente negras. Desde os tempos da escravidão estes espaços misturavam os pobres da cidade. O Bexiga, por exemplo, tem sido negro e italiano; a Barra Funda, negra e portuguesa e assim por diante. No entanto, isto não quer dizer que historicamente não tenha existido em São Paulo uma comunidade negra fortemente estruturada e circunscrita a um território particular. A mistura de brancos e negros nas zonas populares da cidade significou, sim, a incorporação de alguns brancos e a mulatização da comunidade.

Qualquer um destes quilombos paulistanos da Primeira República tinha fama de ser lugar de “desclassificados”.

Sua marginalidade era identificada com a não proletarização de sua população, o que é imediatamente associado à ideia de desorganização, uma vez que a ocasionalidade da distribuição dos tempos de trabalho e lazer contrasta com a disciplina e regularidade do emprego assalariado.

A imagem de marginalidade é também identificada com o próprio da habitação coletiva: a intensidade de uma vida em grupo não familiar e a densidade dos contatos no dia a dia do cortiço contrasta com a organização burguesa (familiar, isolada, internamente divida em cômodos com funções e habitantes segregados). Finalmente, a marginalidade é associada a um conjuntos de gestos, um jeito de corpo. Se, para a comunidade negra, a linguagem do corpo é elemento de liga e sustentação do código coletivo que institui a comunidade, para a classe dominante branca e cristã a frequência com que se dança, umbiga, requebra e abraça publicamente desafia padrões morais. A presença de terreiros e práticas religiosas africanas completa o estigma: macumba é marginal porque é “crendice”, é “religião primitiva” que afronta a religião oficial.

Desmarginalização

A posição de marginalidade da comunidade negra só começaria a se alterar levemente a partir da década de 30, quando negros e mulatos começam a entrar no mercado formal de trabalho. A “integração” do grupo significaria uma redefinição de seu território. Para os membros da própria comunidade que já estavam “integrados”, a desmarginalização se coloca claramente em termos territoriais — era preciso sair logo dos cômodos e porões para organizar um novo território negro familiar. Esta foi uma das palavras de ordem da Frente Negra Brasileira, agremiação política fundada em 1931, e que pregava a necessidade de instrução e organização da vida familiar nuclear na comunidade para que os negros pudessem atingir a igualdade com o branco. Uma das ações concretas dos membros da Frente foi comprar terrenos em loteamentos recém-abertos na periferias da cidade, fundando núcleos negros formados por casas próprias. Casa Verde, Vila Formosa, Parque Peruche, Cruz das Almas e Bosque da Saúde são exemplos desta nova forma de territorialização –em bairros inicialmente sem nenhuma infraestrutura e distantes do centro, famílias negras começaram a edificar casas próprias em lotes comprados.

Rua no bairro da Casa Verde, em São Paulo, em 1948 (Folhapress)

O movimento de periferização da comunidade negra começou a ocorrer em um momento em que parte da comunidade se integrava –econômica, cultural e territorialmente– à vida de uma cidade onde a habitação popular se periferizava. Este movimento significou também dispersão –nenhum dos novos núcleos chegou a configurar um território negro tão caracterizado como o Bexiga e a Barra Funda. Se no passado eram poucos e densos, os quilombos agora se multiplicaram em um desenho mais rarefeito.

Devir negro

Esta breve história dos territórios paulistanos nos fornece alguns elementos para refletir acerca do papel e do destino da comunidade negra da cidade escravocrata e nos revela como os espaços que cabiam aos negros foram investidos por um devir negro, que estruturou e sustentou a comunidade mesmo nas situações mais extremas de confinamento, humilhação, segregação e miséria.

A história desta comunidade é marcada pela estigmatização dos territórios negros da cidade: se no mundo escravocrata devir negro era sinônimo de sub-humanidade e barbárie, na República do trabalho livre, livre virou marca de marginalidade. O estigma se formulou a partir de um discurso etnocêntrico e uma pratica repressiva: do olhar vigilante do senhor na senzala ao pânico dos sanitaristas em visita ao cortiço; do registro esquadrinhador do planejador urbano à violência das viaturas policiais nas vilas e favelas.

Para a cidade, território marginal é território perigoso porque é dali, daquele espaço definido por quem não mora ali como desorganizado, promíscuo e imoral, que pode nascer uma força disruptora sem limite. Assim se institui uma espécie de apartheid velado que, se por um lado confina a comunidade à posição estigmatizada de marginal, por outro nem reconhece a existência de seu território, espaço/quilombo singular.

* Raquel Rolnik é arquiteta, urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Foi relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) para o Direito à Moradia Adequada (2008-2014). Atuou como diretora de Planejamento da Prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina, entre 1989 e 1992, coordenadora de Urbanismo do Instituto Pólis, entre 1997 e 2002, e secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, entre 2003 e 2007, no governo Lula.

 

[+] Conheça o site do Banco de Dados
http://www1.folha.uol.com.br/banco-de-dados/

[+] Siga-nos no Twitter
https://twitter.com/BD_Folha

[+] Curta a página Saiu no NP
https://www.facebook.com/Saiu-no-NP-168161556714765/

[+] Curta o Acervo Folha no Facebook
https://www.facebook.com/acervofolha/

]]>
0
OUTROS 13 DE MAIO: Ricupero destacou relação entre escravidão e terra https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/05/09/outros-13-de-maio-ricupero-destacou-relacao-entre-escravidao-e-terra/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/05/09/outros-13-de-maio-ricupero-destacou-relacao-entre-escravidao-e-terra/#respond Wed, 09 May 2018 10:30:50 +0000 https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/Orlando-Charge-8.jun_.1996-320x213.png http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/?p=9346 Em artigo, de 8 de junho de 1996, o embaixador Rubens Ricupero lembrou de um discurso do abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910), que, segundo o diplomata, foi deliberadamente esquecido.

A fala de Nabuco era a de que não bastava dar apenas liberdade aos escravos, mas que era necessário destinar terras a eles e também meios para que pudessem trabalhar nelas.

Ricupero fez uma comparação histórica e citou notícias atuais, de trabalhadores escravos em Rondônia e de homens conduzidos por cordas no pescoço pela polícia no Rio de Janeiro.

Esse artigo é o segundo texto da série que o Banco de Dados resgata e publica no Blog Acervo Folha até domingo (13), quando serão completados 130 anos do fim da escravidão.

Leia abaixo:

8.jun.1996

Escravidão e reforma agrária

* RUBENS RICUPERO

Em plena África do Sul abro o Financial Times e o Brasil me atinge como um soco no estômago. Uma foto dramática de trabalhadores escravos liberados de um latifúndio de Rondônia.

Alguns deles, dizia a reportagem, acabaram por voltar à fazenda, pois não havia outro trabalho para não morrer de fome.

Rubens Ricupero gesticula durante entrevista, em São Paulo (Eduardo Knapp – 8.mai.2015/Folhapress)

Lembrei de outra foto, anos atrás. Numa batida policial em morro do Rio de Janeiro, uma fileira de homens, quase todos de cor, eram conduzidos com cordas no pescoço. A PM e os capitães-do-mato, os presos de hoje e os escravos fugidos de ontem, a foto e as gravuras de Debret se fundiam numa só imagem dolorosa e trágica do fracasso em nos libertarmos do nosso passado.

Joaquim Nabuco foi dos raros brasileiros que sempre viu nítido o elo entre escravidão e terra. Em inesquecível e portanto deliberadamente esquecido discurso no Recife, dizia não bastar dar liberdade ao escravo. Era preciso dar-lhe terra e os meios para trabalhá-la.

Não foi ouvido nem então nem hoje. Talvez porque os dirigentes do seu tempo, assim como os que vieram depois, correspondiam ao que dizia Nabuco, repetindo Hegel: que o pior da escravidão era de aviltar e degradar não só o escravo mas sobretudo o senhor do escravo.

É estranho, perturbador, como permanecemos prisioneiros de nossa história, como estamos quase que condenados a repeti-la sem cessar.

E até mesmo sem nos darmos conta. Quantos, por exemplo, entre nós, percebem a sugestiva semelhança, na atitude e nos argumentos, entre a resistência à abolição do Império e a recusa da reforma agrária na República?

Dizia-se, então, sobretudo após a lei do Ventre Livre, que era só uma questão de tempo, chegando alguns a insinuar que lá por 1930 os últimos cativos poderiam ser resgatados pela metade do preço.

Fazê-lo antes seria irresponsável precipitação, com o risco de arruinar a economia, ainda dependente do “elemento servil”. Olvidava-se que, anos antes, ao cogitar-se da proibição do tráfico, ameaçara-se com o mesmo argumento da crise da economia.

Na verdade, ocorreu o contrário: os capitais liberados pelo fim do tráfico impulsionaram um grande momento de aceleração do crescimento econômico.

 

OUTROS 13 DE MAIO: Darcy Ribeiro escreveu que escravidão era sustentáculo do império: “Morra a princesa”

 

Em nossos dias, o gradualismo também virou moda. Afirma-se que a capitalização e modernização da agro-indústria, a queda das taxas demográficas e de fertilidade darão cabo do problema de forma indolor, imperceptível. Esse asséptico e “tecnicamente correto” quadro agrário só é estragado pelos trabalhadores rurais que teimosamente insistem em serem massacrados pelas polícias e pelos jagunços.

Da mesma forma, há um século atrás, foram as fugas maciças de escravos em São Paulo e a altiva recusa do Exército em persegui-los que forçaram o governo imperial a propor e o Parlamento a aprovar a Lei Áurea, apesar da oposição até o fim do “grupo do coice”, liderado pelo deputado Paulino Soares de Souza, o “primo Paulininho” dos fazendeiros fluminenses.

Em contraste, na África do Sul, onde a iníqua lei de terras de 1913 e o “apartheid” confinaram 87% da população (os negros) em 13% das terras (as piores), assiste-se a uma “revolução silenciosa”: a maior transferência de terras da história do país. O processo é pacífico, consensual, facilitado por créditos e subsídios oficiais. Também já há quem denuncie os subsídios em nome do equilíbrio orçamentário. Os defensores dizem, porém, com razão, que se trata apenas de reparação tardia do confisco de que foram vítimas os africanos.

Lembrei num discurso em pretória, a propósito da espoliação colonialista da África, os versos de T.S. Eliot: “Seja o que for que herdamos dos afortunados, nós antes o arrancamos dos derrotados”. Terá sido diferente no Brasil?

A diferença que vejo é que, ao aprovar a nova Constituição, os sul-africanos tiveram a coragem de aceitar uma “cláusula de terras” que facilita a reforma agrária.

E o nosso Congresso, quando será capaz de fazer o mesmo, superando de vez por todas aquela herança da nossa história que Nabuco estigmatizou, ao dizer que o Brasil era uma nação sem povo, pois uma massa de escravos jamais seria um povo?

* Rubens Ricupero foi secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (1995-2004). Exerceu o cargo de ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal (1993-1994) e o da Fazenda (1994), ambos no governo Itamar Franco. Foi embaixador em Genebra (1987–1991), Washington (1991–1993) e Roma (1995).

 

[+] Conheça o site do Banco de Dados
http://www1.folha.uol.com.br/banco-de-dados/

[+] Siga-nos no Twitter
https://twitter.com/BD_Folha

[+] Curta a página Saiu no NP
https://www.facebook.com/Saiu-no-NP-168161556714765/

[+] Curta o Acervo Folha no Facebook
https://www.facebook.com/acervofolha/

 

]]>
0