Acervo Folha https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br No jornal, na internet e na história Fri, 19 Feb 2021 13:40:24 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Há 20 anos, morria Tim Maia, o ‘síndico’ mais famoso do Brasil https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/03/15/ha-20-anos-morria-tim-maia-o-sindico-mais-famoso-do-brasil/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/03/15/ha-20-anos-morria-tim-maia-o-sindico-mais-famoso-do-brasil/#respond Thu, 15 Mar 2018 13:05:46 +0000 https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/files/2018/03/Tim-Maia-capa-320x213.jpg http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/?p=8617 Em 15 de março de 1998, a música brasileira perdia a sua principal referência dos gêneros funk e soul produzidos no país. Sebastião Rodrigues Maia, o Tim Maia, um dos mais polêmicos personagem da MPB, morreu aos 55 anos, em decorrência de um choque séptico causado por uma infecção generalizada.

Cantor, compositor e multi-instrumentista, Tim Maia estava internado havia uma semana no hospital Universitário Antônio Pedro, em Niterói (RJ), após se sentir mal durante uma apresentação no Teatro Municipal de Niterói, quando cantava a primeira música do set list, “Não quero Dinheiro (Só quero Amar)”. O show seria gravado para um especial do canal de TV Multishow.

Muitos até riram pensando ser uma brincadeira do cantor, que pouco antes havia reclamado do retorno do som. Outros gritavam “chamem o síndico”, em referência ao apelido que Tim Maia ganhou do amigo Jorge Benjor, imortalizado na música “W/Brasil”. O cantor deixou três filhos, José Carlos, Telmo e Márcio Leonardo.

Nascido na Tijuca, no Rio, em 28 de setembro de 1942, Tim Maia era o 18º dos 19 filhos do casal Altivo Maia e Maria Imaculada Nogueira, donos de uma pensão na rua Afonso Pena, no mesmo bairro.

Na infância era chamado de Tião Marmiteiro, pelo fato de trabalhar como entregador de marmitas para a família.

Show do cantor e compositor Tim Maia, no ginásio do Ibirapuera. em São Paulo (Foto: Marcelo Soubhia – 26.11.1993/Folhapress)

TIJUCANOS, SNAKES E SPUTNIKS

A afinidade com a música começou aos 9 anos, quando Tim ganhou um violão de seu pai. Nessa época, ouvia Angela Maria, Cauby Peixoto, Silvio Caldas e Anísio Silva entre outros astros da música brasileira.

O primeiro conjunto, Os Tijucanos do Ritmo, foi criado em 1956 com o apoio da igreja dos capuchinhos, localizada na rua Haddock Lobo, também na Tijuca. No ano seguinte, com o amigo de infância Erasmo Carlos, para quem ensinou os primeiros acordes de violão, integrou os Snakes, que durou poucos meses.

No mesmo ano, com Roberto Carlos, Arlênio Livio, Edson Trindade e Wellington Oliveira, fez parte dos Sputniks, grupo que fazia cover de sucessos norte-americanos da época, sobretudo do rock, que acabava de surgir nos EUA. A banda chegou a se apresentar no programa Clube do Rock, comandado por Carlos Imperial na TV Tupi. Mas uma discussão calorosa entre Tim e Roberto Carlos, que almejava seguir carreira solo, pôs fim ao quinteto.

Tim Maia, cantor e compositor carioca, criador da soul music e do funk no Brasil, recebe das mãos de Luís Eduardo Borgerth, então diretor-executivo da Globo, o troféu de Melhor Cantor e disco de ouro na TV Excelsior (Foto: 11.abr.1971/Folhapress)

EUA

Em 1959, a Bossa Nova era a bola da vez no cenário musical brasileiro, mas para Tim, era coisa para a classe média da zona sul do Rio, muito distante da realidade dos jovens “tijucanos”. No mesmo ano, com a morte do pai, Tim Maia rumou aos 17 anos para os EUA, um sonho que alimentava havia alguns anos.

Em Nova York fez um pouco de tudo, trabalhou em lanchonetes, enfermarias e de faxineiro em asilo. Influenciado pela música negra, montou o grupo de soul The Ideals. Na ocasião ganhou o codinome “Jimmy, the Brazilian”. Tim Maia ficou no país até 1964, ano em que foi deportado para o Brasil após seis meses de prisão por porte de maconha.

O cantor e compositor Tim Maia no início da década de 70 (Foto: Acervo UH/Folhapress)

O RETORNO

No Brasil, Tim começou a trabalhar como guia turístico no Rio. Mas a música ainda era o seu grande sonho.

Em 1966 gravou um disco com “Os Dominós”. No final de 1968, no programa Jovem Guarda, comandado pelo trio Roberto, Erasmo e Wanderléia, na TV Record, lançou um compacto com as músicas “Meu País” e “Sentimento”, pela CBS.

No ano seguinte, o músico foi convidado pela cantora Elis Regina para um dueto em “These are the songs”, composição de Tim que a cantora incluiu em seu álbum “Em Pleno Verão” (1970). A música já havia sido lançada pelo cantor em compacto. Ainda em 1969, o compositor teve o seu funk “Não vou ficar” gravado por Roberto Carlos, que tinha abandonado a Jovem Guarda um ano antes.

O cantor e compositor Tim Maia em show com a banda Vitória Régia em 1971 (Foto: Reprodução)

O INTRODUTOR DA SOUL MUSIC NO BRASIL

O primeiro LP de Tim Maia foi lançado em 1970, e trazia as primeiras pérolas do funk e do soul feitas no Brasil. Algumas, mescladas a vertentes regionais da música brasileira. Entre as canções de destaques do álbum estão “Primavera”, “Azul da Cor do Mar” e “Coroné Antônio Bento”.

Em 1971, Tim gravou as inesquecíveis “Não Quero Dinheiro (Só Quero Amar)”, “A Festa do Santo Reis”, “Não Vou Ficar” e “Você”. Depois vieram “Canário do Reino” e “O Que me Importa” (1972). Em Tim Maia (1973) o cantor trouxe “Réu Confesso” e “Gostava Tanto de Você”. Era a consagração de um astro.

Tim Maia em 1972, pouco antes de entrar para a seita Universo em Desencanto, que procurava pregar a filosofia “racional” (Foto: Reprodução)

TIM MAIA RACIONAL      

Em 1974, Tim Maia entrou para a doutrina religiosa Universo em Desencanto, que o distanciou da boemia e das drogas. Nessa fase, produziu dois álbuns de sonoridades e arranjos considerados excepcionais pela crítica: Tim Maia Racional Volumes um e dois, lançados em 1974 e 1975.

Em 2000, algumas faixas descartadas desse período, culminaram no lançamento de um terceiro volume, este intitulado “Racional Volume Três”.

A relação com a seita, contudo, foi interrompida quando Tim foi informado que o mestre da doutrina, Manuel Jacintho Coelho, estaria comprando terrenos no Rio às suas custas.

Em 1976, fora da religiosidade e de volta às loucuras, Tim Maia entrava nas paradas com a música “Rodésia”. Mas o álbum que fechou a década em grande estilo foi Tim Maia Disco Club (1979), com as memoráveis e dançantes “Acenda o Farol” e “Sossego”.

O cantor Tim Maia em 1975 canta durante show na época em que aderiu ao “Universo em Desencanto” e pregava a Cultura Racional. (Foto: Divulgação)

UMA NOVA ERA

Em 1983, Tim Maia atuou apenas como intérprete no LP “O Descobridor dos Sete Mares”.É deste álbum a música “Me dê Motivo”, dos criadores de hits Michael Sullivan e Paulo Massadas, que compuseram ainda “Um Dia de Domingo”, um dueto de Tim com a cantora Gal Costa, muito executado nas rádios anos depois.

Com um estilo romântico e menos sofisticado, a década continuou com as populares “Bons Momentos” (1984),  “Leva” (1985) e a contagiante “Do Leme ao Pontal/Tomo Guaraná, Suco de Cajú, Goiabada para Sobremesa” (1986) entre outras.

Em 1990, o cantor lançou “Tim Maia Interpreta Clássicos da Bossa Nova”. Cinco anos depois gravou “Arrastão”, “Corcovado” e “Aquarela do Brasil” no disco “Nova Era Glacial” (1995).

Em 1997, lançou os álbuns “What a Wonderful World”, onde revisitou músicas americanas que o influenciaram nos anos 1950 e 1960 e “Amigos do Rei”, em parceria com o grupo vocal Os Cariocas.

Tim Maia, cantor e compositor carioca, criador da soul music e do funk no Brasil, posa para foto (Foto: Homero Sérgio/Folhapress)

POLÊMICAS

Em 1977, atolado em dívidas, Tim Maia teve prisão decretada por vender um de seus carros que estavam penhorados pela Justiça. Em outra ocasião, em 1984, foi acusado de emitir um cheque sem fundos para o pagamento de uma passagem aérea. Nesta, foi processado por estelionato.

Em 1990, abandonou o palco num show realizado em Duque de Caxias, no Rio. O promotor do espetáculo entrou na Justiça contra o cantor.

Tim ficou conhecido também pelos “canos” em shows e atrações de TV. Em 1993, ao deixar de cumprir agenda no programa do Faustão, na Globo, o então diretor de programação da emissora, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, emitiu um memorando vetando sua presença no canal. “Tendo em vista o comportamento reincidente do cantor Tim Maia, informamos que está proibida, até segunda ordem, a sua presença em qualquer programa da Rede Globo”, decidiu Boni.

Tim Maia durante show em 1991 (Foto: Mário Fontes – 19.mar.1991/Folhapress)

O ÚLTIMO PROJETO

Uma semana antes de sair de cena, Tim Maia chamou o produtor musical Almir Chediak para retomar um projeto idealizado dois anos antes, em 1996, para o lançamento de um songbook com os maiores sucessos de sua carreira.

Contudo, assustado com os prognósticos de um vidente, disse ao produtor: “Almir, dá um tempo, porque esse negócio de songbook e biografia é para quem está com o pé na cova”.

Tim Maia durante show no Aeroanta, em São Paulo  (Foto: Silas Botelho – 13.mar.1991/Folhapress)

 

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Há 20 anos, em série especial, Folha mostrou como Freud analisava a psicanálise e sua própria vida https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/01/03/ha-20-anos-em-serie-especial-folha-mostrou-como-freud-analisava-a-psicanalise-e-sua-propria-vida/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2018/01/03/ha-20-anos-em-serie-especial-folha-mostrou-como-freud-analisava-a-psicanalise-e-sua-propria-vida/#respond Wed, 03 Jan 2018 07:00:28 +0000 https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/files/2017/12/BHi_j0166-180x131.jpg http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/?p=7093 Em 3 de janeiro de 1998, a Folha publicou o segundo de uma série de três capítulos do especial “Entrevistas Históricas”, no caderno Mundo.

A personalidade da vez é o médico Sigmund Freud, em entrevista feita por George Sylvester Vierek, em 1930, para ”Glimpses of the Great”.

Você também pode ler “Uma conversa entre Stálin e Wells“, de 1934, resgatada aqui no Blog do Acervo Folha. Amanhã, no último capítulo, o personagem será Adolf Hitler.

DO “EL PAÍS”

Sigmund Freud (1856-1939), o judeu austríaco fundador da psicanálise, estudou medicina em Viena. Continuou a sua formação em Paris, junto a Jean-Marie Charcot, que empregava a hipnose como tratamento para a histeria. Mais adiante, Freud desenvolveria a sua teoria psicanalítica. Sustentava que a neurose era produto da sexualidade infantil.

Em 1890, publicou  “A Interpretação dos Sonhos'”. Em 1902, lhe foi outorgada uma cátedra especial de neuropatologia na Universidade de Viena. A partir de então, se concentrou no estudo do comportamento psicológico e psicopatológico e no papel que desempenha a sexualidade no inconsciente. Em 1938, depois da anexação da Áustria pelos nazistas (que já haviam proibido a psicanálise na Alemanha), emigrou para o Reino Unido. Morreu vítima de um câncer na mandíbula.

“Meus 70 anos me ensinaram a aceitar a vida com alegre humildade.” Quem fala assim é o grande explorador das profundezas da alma. Não existe outro mortal que, como Freud, tenha estado tão próximo de encontrar uma explicação para o insondável mistério do comportamento humano.

Nossa conversa foi em sua residência de verão em Semmering, nos Alpes austríacos. Freud tinha a face contraída, como se estivesse sofrendo. Sua mente permanecia alerta, sua cortesia continuava impecável, mas fiquei alarmado com a pequena dificuldade que demonstrava ao falar. Tinha se submetido a uma intervenção cirúrgica devido a uma doença maligna na mandíbula superior. Desde então, leva implantado um aparelho para facilitar a articulação.

‘”Detesto essa mandíbula mecânica. A luta com esse mecanismo me faz desperdiçar uma energia preciosa. Mas prefiro ter uma mandíbula mecânica do que não ter nenhuma, a sobrevivência à extinção. Talvez, ao tornarem a vida impossível conforme envelhecemos, os deuses estejam mostrando compaixão. Afinal, a morte nos parece menos intolerante do que as múltiplas cargas que suportamos.”

Freud não admite que o destino o trate com especial dureza.

‘”Por que deveria esperar um tratamento especial? A velhice chega para todos. Não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, vivi 70 anos. Sempre tive o suficiente para comer. Desfrutei de muitas coisas: da camaradagem de minha mulher, de meus filhos, do pôr do sol. De vez em quando tenho a satisfação de apertar uma mão amiga. Em algumas ocasiões encontrei seres humanos que quase chegaram a me compreender. Que mais se pode pedir?”

‘”Alcançou a fama”, respondi. “Seu trabalho influiu na literatura de todos os países. O homem vê a si próprio e contempla a vida com outros olhos graças ao senhor. E, por ocasião do seu setuagésimo aniversário, o mundo se uniu para prestar-lhe uma homenagem. Exceto a sua própria universidade.”

“Se a Universidade de Viena me tivesse oferecido seu reconhecimento, somente teria me envergonhado. Não existe razão alguma pela qual devam reconhecimento a mim ou à minha doutrina só porque faço 70 anos. Não dou importância desmedida aos números. A fama nos chega depois da morte e, francamente, o que ocorrer depois da minha não me preocupa. Não desejo a glória póstuma.”

Edição da Folha de S.Paulo de 3 de janeiro de 1998.

“Para o senhor não significa nada que o seu nome sobreviva?”

‘”Nada em absoluto. O futuro dos meus filhos me interessa mais. Espero que a vida deles não seja tão dura. Eu não posso torná-la mais fácil. A guerra (Primeira Guerra Mundial) praticamente acabou com a minha modesta fortuna, a poupança de toda uma vida. Por sorte, minha velhice não é uma carga muito pesada. Meu trabalho ainda me dá prazer.”

Passeávamos pelo íngreme jardim de sua casa. Freud acariciou com ternura um arbusto. “Interessa-me muito mais esta planta do que qualquer coisa que possa ocorrer quando eu esteja morto.”

“Não deseja a imortalidade?”

“Sinceramente, não. Quando alguém percebe o egoísmo por trás de toda conduta humana, não sente o menor desejo de renascer. Me satisfaz saber que a eterna moléstia de viver chega finalmente ao fim. Nossa vida é composta, necessariamente, de uma série de compromissos. É uma luta sem fim entre o ego e o seu entorno. O desejo de prolongar a vida além do natural me parece absurdo. Não há razão para desejarmos viver mais tempo, mas são muitos os motivos para que queiramos fazê-lo com a menor quantidade possível de incômodos. Eu sou razoavelmente feliz porque agradeço a ausência de dor e desfruto dos pequenos prazeres da vida, da presença de meus filhos e das minhas flores.”

“É possível”, prosseguiu Freud, ”que a própria morte não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer. Do mesmo modo que em nosso interior convivem simultaneamente o ódio e o amor por uma pessoa, a vida combina o desejo de sobrevivência com um ambivalente desejo de aniquilação. Como um elástico que tem a tendência de recuperar a sua forma original, a matéria viva, consciente ou inconscientemente, deseja conseguir de novo a inércia total e absoluta da existência inorgânica. O desejo de morte e o de vida convivem em nosso interior. A morte é o par natural do amor. Juntos, governam o mundo.”

“Na sua origem”, continua Freud, “a psicanálise assumia que o amor era o mais importante. Atualmente, sabemos que a morte é igualmente importante. Biologicamente, cada ser vivo, por mais forte que arda nele o fogo da vida, tende ao nirvana, deseja que a febre chamada vida chegue ao seu fim. Podemos jogar com a ideia de que a morte nos alcança porque a desejamos. Talvez pudéssemos vencer a morte, se não fosse pelo aliado que ela tem dentro de nós. Assim, poderíamos dizer que toda morte é um suicídio encoberto.”

‘”Em que o senhor está trabalhando?”

“Escrevo uma defesa da psicanálise secular. Pretendem tornar ilegal a prática por pessoas que não sejam médicos em exercício. A história, essa velha plagiária, se repete sempre que há uma descoberta. Inicialmente, os doutores se opõem impetuosamente a toda verdade nova. Imediatamente depois, tentam monopolizá-la.”

“O senhor já se analisou?”

“Obviamente. O psicanalista deve analisar-se constantemente. Aumenta nossa capacidade de analisar os outros. O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. Os demais depositam nele os seus pecados.”

“Sempre pensei que a psicanálise necessariamente induzisse naqueles que a praticam a caridade cristã. Não há nada na existência humana que a psicanálise não nos ajude a compreender”, afirmei.

“Compreender tudo não é perdoar tudo. A psicanálise ensina que devemos evitar. Tolerar o mal não é em absoluto um corolário do conhecimento.”

A noção de retidão de Freud é herança de seus antepassados. É uma herança da qual se tem orgulho, como se tem orgulho de sua raça. “Meu idioma é o alemão. Minha cultura e minhas conquistas são alemãs. Intelectualmente, me considerei alemão até perceber que os preconceitos anti-semitas iam aumentando na Alemanha e na Áustria. A partir de então, deixei de considerar-me alemão. Prefiro definir-me como judeu.”

Senti-me decepcionado. Ao meu ver, o espírito de Freud devia voar mais alto, acima de qualquer preconceito racial, e permanecer à margem do rancor pessoal. Não obstante, sua indignação, sua justa cólera, o faziam humanamente muito mais atraente. “Agrada-me descobrir, professor, que o senhor também tem seus complexos.”

“Nossos complexos são a causa de nossa fraqueza; mas também, constantemente, são a nossa fortaleza”, respondeu Freud.

Oscar Nemon esculpe um busto de Sigmund Freud, em 1931. (Foto: Reprodução)

“Algumas vezes me pergunto se não seríamos mais felizes sabendo menos dos processos que dão forma aos nossos pensamentos e emoções”, afirmei. ”A psicanálise despoja a vida de seus encantos ao vincular cada sentimento aos complexos que a originam. Descobrir que alojamos no coração um selvagem, um criminoso, uma besta, não nos faz mais felizes.”

”O que você tem contra as bestas?”, perguntou Freud. “Eu prefiro muito mais a companhia dos animais. São muito mais simples. Não têm uma personalidade dividida, não sofrem a desintegração do ego que surge da tentativa do homem de adaptar-se à regras da civilização. O selvagem, como a besta, é cruel, mas está livre da mesquinharia própria do ser civilizado. A mesquinharia é a maneira que o homem tem para vingar-se da sociedade pelas restrições que esta lhe impõe. É o sentimento vingativo que anima o reformista e o fofoqueiro.

Um selvagem pode nos cortar a cabeça, nos devorar, nos torturar, mas nos poupará das pequenas e contínuas ferroadas que, às vezes, fazem que a vida em uma comunidade civilizada seja quase intolerável. Os hábitos e idiossincrasias mais desagradáveis do homem, sua falsidade, sua covardia, sua falta de respeito, são produtos de uma adaptação incompleta a uma civilização complexa. São o resultado do conflito entre nossos instintos e nossa cultura. Muito mais satisfatórias resultam as simples e intensas emoções de um cachorro que agita o rabo quando está contente ou late para manifestar irritação!”

“Talvez o senhor seja o responsável, ao menos em parte, pelas complicações da civilização moderna. Antes da invenção da psicanálise, não sabíamos que nossa personalidade está sob o domínio de uma beligerante hoste de complexos. A psicanálise converteu a vida em um complicado quebra-cabeça.”

“Em absoluto”, respondeu Freud.  “A psicanálise simplifica a vida. Depois de analisarmos, conseguimos uma nova síntese. A psicanálise reorganiza o labirinto de impulsos dispersos e tenta encaixá-los na meada a que pertencem. Ou, para mudar de metáfora, proporciona o fio que permite ao homem sair do labirinto de seu próprio inconsciente.”

“Tenho a impressão de que a estrutura científica que o senhor construiu é altamente elaborada. Seus elementos fixos (a teoria da ‘substituição’, da ‘sexualidade infantil’, a ‘simbologia dos sonhos’ etc.) parecem inamovíveis.”

“Isso é só o começo. Não sou mais que um principiante. Tive êxito no que se refere a desenterrar monumentos submersos no substrato da mente. Mas onde encontrei uns poucos templos, outros podem descobrir um continente.”

“Continua pondo o máximo de ênfase no sexo?”

“Posso ter cometido muitos erros, mas estou completamente seguro de que não me equivoquei ao considerar predominante o instinto sexual. Dado que se trata de um instinto tão poderoso, choca-se com especial frequência com as convenções e salvaguardas da civilização. Como mecanismo de autodefesa, a humanidade tenta negar a sua suprema importância. Analise qualquer emoção humana, não importa o quão distante pareça estar da esfera sexual, e seguramente descobrirá em algum lado o impulso primário, ao qual a própria vida deve a sua perpetuação.”

Anoiteceu. Já era hora de pegar o trem de volta para a cidade.

“Não me faça parecer um pessimista”, pediu-me Freud. “Não desprezo o mundo. Mostrar desprezo ao mundo é só uma forma a mais de adulá-lo para obter reconhecimento. Não, não sou pessimista, não enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores. E não me sinto infeliz. Ao menos, não mais do que os outros.”

Tradução de Claudia Rossi.

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HÁ 50 ANOS: São Paulo acaba com isolamento compulsório de hansenianos https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2017/06/25/ha-50-anos-sao-paulo-acaba-com-isolamento-compulsorio-de-hansenianos/ https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/2017/06/25/ha-50-anos-sao-paulo-acaba-com-isolamento-compulsorio-de-hansenianos/#respond Sun, 25 Jun 2017 05:00:31 +0000 https://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/files/2017/06/lepra-180x82.jpg http://acervofolha.blogfolha.uol.com.br/?p=4277 São Paulo abolirá o isolamento compulsório e indiscriminado de hansenianos e adotará o controle da moléstia, tratamento e vigilância dos doentes.

O novo rumo para a profilaxia da lepra foi traçado em reunião do Conselho Superior de Saúde do Estado, com o secretário Walter Leser.

Com base em argumentos do professor Abrahão Rotberg, perito em lepra da Organização Mundial da Saúde, os sanatórios se tornarão centros de estudo. “O isolamento era contraproducente, pois o pavor levava pacientes a esconderem a doença, só descoberta quando alcançava fases avançadas”, disse ele.

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