Vem dançar, irmão, James Brown está na pista

“Na quadra da escola o som tá diferente, tá pintando aí a nova transação. O movimento é black, é sim importação”, alerta Franco na música “Black Samba”. Em 1978, o cantor -e hoje empresário- conhecido pelos adeptos do samba-rock, registrou a contestação ao que muitos chamaram de invasão da música black americana nas escolas de samba do Rio de Janeiro.

Na década de 70, além da marcação do samba, soul e funk passaram a dominar mente e corpo dos mais jovens. Em diversas regiões do país não foi diferente. Um dos culpados pela mudança de comportamento e transformação visual dos frequentadores dos bailes tinha seu nome sendo repetido pela maioria: James Brown.

Artistas como Gerson King Combo, Carlos Dafé, União Black, Lady Zu, Banda Black Rio, entre outros, seguiram a trilha funk de James Brown, mas incluindo formas e cores brasileiras. Em artigo publicado na Folha em maio de 1978,  Nei Duclós, jornalista e escritor, comentou a mutação de estilo dos novos “blacks”: “De tanto escutar soul e colecionar fotos e discos dos ídolos, os fãs aderiram à moda dos cabelos black, das roupas espalhafatosas, dos grandes sapatões de sola grossa e expressões típicas como brother”.

PODER NEGRO
A cultura de massa mais uma vez gerava reações de puristas, críticos que focavam apenas a parte estética importada dos EUA, mas não percebiam a afirmação da comunidade negra e a luta contra o racismo que vieram embaladas com o groove e a voz do padrinho do soul, que agora reinava no território do funk.

“James Brown, em 1968, cantou ‘Say it loud, I’m black and I’m proud’ [diga alto: sou negro e tenho orgulho], isso teve influência na música feita no Brasil. Em 1971, Jorge Ben veio com ‘Negro é lindo’. Percebemos essa força pelos nomes das equipes de baile, como Transa Negra, Black Power, foi uma injeção de autoestima no comportamento das pessoas da periferia, das pessoas pretas. Elas perceberam que eram lindas como elas eram, com a cultura delas e que eram capazes de fazer o que elas quisessem”, afirma Gilberto Yoshinaga, jornalista e autor da biografia “Nelson Triunfo: Do Sertão ao Hip Hop”, sobre um dos pioneiros do hip hop brasileiro.

Música, transe, possessão, diversão, uma sequência que fundamentava as pistas, para dar ares políticos no cotidiano da juventude suburbana. Foi assim que Nelson Triunfo, o Nelsão, conheceu o som de James Brown.

SÃO PAULO, SP, BRASIL, 00-00-1984: Nelson Triunfo dança break no centro da cidade de São Paulo (SP). (Foto: Folhapress)
Nelson Triunfo dança break no centro da cidade de São Paulo (SP). (Foto: 1984/Folhapress)

“Tive o primeiro contato com os discos de James Brown quando saí de Pernambuco para estudar em Paulo Afonso, na Bahia. De cara, fiquei apaixonado. Os grupos lá de Paulo Afonso tocavam bastante black music, eles bebiam numa fonte diferente e diziam: se você quer curtir um balanço pesado, tem que ouvir James Brown”, relembra Nelsão. “Sex machine” foi a primeira música que Triunfo ouviu, depois disso, buscou mais informações sobre seu novo ídolo e, em 1972, montou seu primeiro grupo de dança, Os Invertebrados.

Segundo Nelson Triunfo, o movimento black era mais forte no Rio de Janeiro, mas tinha ramificações em São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Brasília.

Fã de James Brown
Fã de James Brown posa para foto em 1977.

Em São Paulo, Eazy Nylon, DJ e radialista da rádio 105 FM, deu seus primeiros passos no mundo do funk já na infância. Da música dos terreiros de candomblé ao som dos bailes, a batida de James Brown marcou seus dias.

“Em 1977, no centro da minha mãe, todos eram tratados como irmãos, primos. Um desses primos era percussionista da banda do Luis Wagner. Como eu tocava atabaque no centro, ele me convidou pra treinar, pra tocar tumbadora. Ele me levou pra casa dele pra tocar aquelas tumbadoras grandes, meu primo colocava as músicas do James Brown pra eu ensaiar ouvindo toda a melodia e harmonia pra poder acompanhar na percussão”, recorda Eazy que, desde 1987, passou a tocar os sons de Brown nos bailes da equipe Chic Show.

Filho do maestro Claudio Santoro, criado num ambiente onde a música clássica e eletroacústica predominavam, DJ Raffa, um dos mais respeitados produtores de rap do país, conheceu a arte do pai do soul-funk quando dançava break nos bailes da periferia de Brasília, nos anos 1980. “Era obrigatório, o som da época era o miami bass, mas toda a equipe de baile tinha que ter uma sessão de soul-funk do final dos anos 1970, e James Brown era unanimidade, foi assim que ele entrou na minha vida”, conclui.

A Folha acompanhou a movimentação das equipes de bailes black. Em 1977, Company Soul, Black Mad, Zimbabwe, Soul Train, Furacão 2000, entre outras, foram destaque nas reportagens “Apresentamos os blacks de São Paulo” e “Os blacks se unem”. Soul e funk fizeram parte da formação da identidade negra no Brasil. Negros orgulhosos e reunidos em festas que celebravam sua ancestralidade, tendo James Brown como seu ídolo máximo. O cantor veio ao Brasil em 1973, quando foi recepcionado por Wilson Simonal,  1988, em São Paulo e Rio de Janeiro,  e 1994, no Free Jazz Festival.

O cantor norte-americano de soul e funk, James Brown, tenta tocar pandeiro ao lado de Wilson Simonal (à esquerda) e  sambistas brasileiras após desembarque no aeroporto de Congonhas, em São Paulo (SP). (São Paulo (SP), 29.03.1973. Foto: Acervo UH/Folhapress)
O cantor norte-americano de soul e funk, James Brown, tenta tocar pandeiro ao lado de Wilson Simonal (à esquerda) e sambistas brasileiros após desembarque no aeroporto de Congonhas, em São Paulo (Crédito: Acervo UH – 28.mar.1983/Folhapress)

A ERA DO SAMPLE
A geração hip hop foi totalmente influenciada pela obra do “godfather of soul”. Em 1984, James Brown gravou o single “Unity”, com Afrika Bambaata. Durante os anos seguintes, inspirados pela cultura do sample, muitos artistas utilizaram trechos das músicas de Brown. São 10.493 samples, de acordo com o site Who Sampled.

“Funky Drummer”, segundo DJ Hum, é a música que está no subconsciente do pop, “Ele criou a história de tocar no primeiro tempo. Ninguém fazia aquilo, colocar o baixo na frente, a bateria em primeiro plano. Hoje isso é normal”, aponta Hum.

“Muitas vezes, a guitarra do Brown está em loop, com o mesmo acorde em repetição. Era um sample antes do sample existir”, afirma o cantor Ed Motta, em reportagem publicada na Folha em 2006.

Além de referência para o nome do lider do grupo, Racionais MC’s, o mais importante grupo de rap do Brasil, tem trechos das músicas de James Brown em seus primeiros registros fonográficos: “Pânico na zona sul” e “Tempos difíceis”, músicas lançadas no final dos anos 1980.

James Brown gostava da galera do rap. Em 1994, até afirmou que era o pai do rap. “Eu inventei o rap. Eu sou o pai do rap. Criei o gênero em 1965, com ‘Cold Sweat’ e mais uma porção de outras músicas que misturam balanço e palavras”, afirmou.

No dia 25 de dezembro de 2006, James Brown morreu aos 73 anos, vítima de um ataque cardíaco. O mundo da música ficou sem um dos seus mais inventivos artistas. Nascido em 1933, na Geórgia, Brown sobreviveu em meio ao cotidiano de pobreza. Desenvolvendo diferentes tipos de trabalho e seguindo os pessoas de outros grandes artistas negros, o cantor começou cantando no coral da igreja. Na adolescência, aos 17, foi preso por roubo e cumpriu três anos de detenção.

Em 1959, surpreendeu o cenário musical com “Try me”, seu primeiro disco solo. James Brown teve uma vida repleta de fúria e polêmicas, prisões e agressões, no entanto sua importância na cultura negra é inquestionável.

“Em minha humilde opinião, imediatamente após o assassinato de Martin Luther King, James Brown se tornou o negro mais importante dos Estados Unidos. Os negros estavam em busca de muitas respostas em seguida ao festival de confusões de 1968”, conta Chuck D, líder do grupo Public Enemy, no prefácio do livro “O Dia em que James Brown Salvou a Pátria“, que traz registros do dia em que o cantor garantiu a paz nas ruas dos EUA, no dia do assassinato de Martin Luther King, em 4 de abril de 1968.

O orgulho negro e a força do soul continuam reverberando em diversas alas da música pop contemporânea. No Brasil, a cultura black segue inovando, mas sem deixar de olhar para o retrovisor.