1968 – A PRIMEIRA BOMBA: Explosão no Consulado dos EUA deixa feridas abertas até hoje
Rodolfo Stipp Martino
Luiz Carlos Ferreira
Cristiano Cipriano Pombo
O relógio marcava 1h15 da terça-feira, dia 19 de março de 1968.
Uma forte explosão, no prédio que abriga o Conjunto Nacional na avenida Paulista, marcou o início de uma série de bombas que foram detonadas há 50 anos na cidade de São Paulo. A partir de hoje você conhecerá a história de cada uma delas, em levantamento realizado pelo Banco de Dados Folha.
O alvo foi o Consulado dos EUA, que estava instalado no local –hoje está abrigado na rua Henri Dunant, na Chácara Santo Antônio.
Foram registradas pelo menos 24 bombas e explosões naquele ano, o que mobilizou os governos federal e estadual, o Exército, a Polícia Federal, o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), a Força Pública e delegacias da cidade, num total de 800 agentes voltados a caçar os autores dos ataques, das ameaças feitas a repartições públicas e também a roubos de dinamites e explosivos.
Confira mapa das explosões em São Paulo em 1968
A primeira bomba de 1968 em São Paulo foi colocada próxima da biblioteca do consulado. E foi responsável por fazer a primeira vítima daquele ano, o estudante Orlando Lovecchio Filho, hoje com 72 anos –ele tinha 22 à época.
Natural de Santos, “apolítico e que curtia iê-iê-iê, carros e aviões”, ele tinha passado o final de semana no litoral com os familiares e chegava com dois amigos, Edmundo Ribeiro Mendonça Neto e Vítor Fernando Sicurella Varella, na madrugada de 19 de março de 1968.
Como morava num prédio sem vaga para carros, ele guardava veículos no estacionamento do Conjunto Nacional. Naquela noite, estacionava um DKW, que tinha vindo de Santos (SP) para “ser envenenado” –minutos antes, já tinham guardado um Sinca azul no estacionamento.
Chegaram por volta da 1h, pararam o veículo, pegaram alguns pertences e se deslocaram em busca da saída –deixariam o local pela saída da rua Padre João Manuel.
Ao passarem perto da biblioteca do Consulado dos EUA, os amigos notaram um brilho e um barulho não comuns –e até uma fumacinha–, vindos de perto da grade que separava o andar da área em ficavam os livros.
Vítor, que era corretor de café, foi o primeiro a ver a bomba, mas, acreditando que fosse um curto-circuito elétrico, escondeu-se atrás de uma coluna. “Eu me escondi porque morro de medo de eletricidade.” Naquele dia, esse medo o salvou.
Já Edmundo, que trabalhava como tabelião em Santos, e Orlando, que estudava para o vestibular da Fundação Getúlio Vargas, não lograram tamanha sorte. O primeiro acreditou que a bomba “fosse um negócio de espantar mosquito”. E o segundo, ao ver o objeto de perto, “um cano, embrulhado em um papelão e com umas fitas”, não teve tempo de reagir diante do evento que mudaria toda sua vida.
EXPLOSÃO
Quando o artefato, que continha pelo menos quatro dinamites –chegaram a falar até em 12–, explodiu, Mendonça Neto, então com 23 anos, foi lançado a 8 m de distância e caiu na rua, com estilhaços de uma porta de ferro na coxa direita.
Já Lovecchio diz que só se lembra do momento em que viu o cano. Ele acabou jogado contra um poste e ficou com a perna esquerda bastante ferida. Ao acordar, cercado por muitas pessoas, como informou a Folha, achou estranho que a sola do sapato estivesse “olhando” para ele.
CÔNSUL
Como se veria depois, a opinião mais certeira nos dias que se sucederam à explosão foi a do cônsul americano Niles Bond. Em 1968, fazia oito anos que ele estava no Brasil. “Lamento que, acima de tudo, tenha havido vítimas inocentes. Acho provável que [o ataque] faça parte de um plano terrorista ou também que seja possível que seja em protesto contra a posição norte-americana no Vietnã.”
Na época, ele visitou os feridos no hospital e os presenteou com a coleção de livros “História Econômica dos Estados Unidos”.
Na mesma tarde da explosão, a “Biblioteca do Serviço de Divulgação e Relação Cultural dos Estados Unidos” em São Paulo voltou a funcionar.
O PRIMEIRO DRAMA E A INVESTIGAÇÃO
Não bastassem os ferimentos sofridos com a explosão, os dois estudantes ficaram bastante tempo hospitalizados.
Edmundo Ribeiro Mendonça Neto permaneceu 40 dias e diz que sobreviveu “graças a um milagre”. “Por pouco não perdi a perna. Começou a gangrenar, mas os médicos salvaram”, diz ele.
Já Orlando Lovecchio Filho ficou cerca de três meses internado. E não conseguiu o mesmo milagre que o amigo. “A situação da perna não melhorava. Tentaram de tudo. Chegou uma hora que eu não aguentava mais ver minha mãe sofrer e não queria ficar para sempre no hospital. Então pedi para cortarem”, explicou.
Para buscar forças para a amputação do terço inferior de sua perna esquerda, ele diz ter se inspirado no cantor Roberto Carlos, que perdeu parte de uma perna em um acidente.
“Eu gostava muito do Roberto Carlos e pensei assim: ‘Se ele está vivendo bem, eu também posso’. Isso me ajudou e procurei tocar a minha vida.”
A verdade é que, como foi revelado anos depois, o acidente deixou sequelas nos três jovens.
Em 1993, Mendonça Neto diz ter sofrido por causa dos “gravíssimos ferimentos”, Varella, mesmo sem ferimentos, afirmava ter sofrido abalos morais e psicológicos. E Lovecchio Filho, ter aberto mão de seus sonhos e ainda “obrigado a viver com 80 pedaços de bomba pelo corpo”. Ao conversar com a Folha no último dia 12 de março, ele contou que estava se preparando para ser piloto comercial –já tinha autorização para pilotar aeronaves. “Meu sonho de ser piloto acabou com aquela explosão”, afirmou ele, que ser tornou corretor.
INVESTIGAÇÃO
A polícia mais bateu cabeça do que chegou a alguma conclusão nos primeiros passos da investigação.
Ao ouvir testemunhas, como Leo Mathias, filho do proprietário do Conjunto Nacional, que estacionava o carro no momento da explosão, o general Silvio Correia de Andrade, chefe da Polícia Federal, considerou que a ação parecia obra de terrorista, pois, segundo ele, a técnica era idêntica à empregada em Santiago (Chile) e na América Latina.
Primeiro, a investigação voltou-se para os irmãos Luiz e Vitor Eduardo Ozores Valejo, que moravam com Orlando Lovecchio Filho no n° 1.745 da própria avenida Paulista. Na verdade, os irmãos Valejo foram procurados por Vítor Varella para socorrer os amigos feridos. Essa linha de atuação da polícia resultou em depoimentos, buscas, mas nenhuma pista concreta da autoria do crime.
Depois, a polícia voltou-se para Arlindo Vieira dos Santos, cuja carteira de trabalho foi encontrada perto do local da explosão. Ele chegou a ser preso pelo DOPS, mas, assim como nos primeiros passos da investigação, pouco se conseguiu saber sobre quem colocou a bomba, por que a colocou e do que ela era feita.
Sem novas pistas, a polícia concentrou a investigar nos três jovens. Baseavam-se no fato de que eles podiam ter plantado a bomba e que, sem ter tido tempo para fugir, a “explosão poderia ter sido um acidente de trabalho”.
Assim virou a vida dos três amigos de cabeça para baixo. Foram autorizadas buscas em suas residências e na de parentes próximos.
“Investigaram a minha vida, reviraram a minha casa, tiraram tudo do armário. E, como a polícia não descobriu quem jogou essa bomba, ficou sempre essa suspeição [de que eles eram autores do atentado]”, declarou Lovecchio.
AUTORIA
“Polícia procura o autor do atentado” foi a manchete da Folha publicada no dia seguinte ao episódio. No entanto seus autores só vieram à tona 24 anos depois, em entrevista exclusiva à Folha, concedida ao repórter Mario Cesar Carvalho, publicada em 18 de maio de 1992.
Sérgio Ferro, arquiteto, professor e um dos mais renomados artistas plásticos do país, pela primeira vez assumia ser um dos responsáveis pela detonação do petardo ao lado do também arquiteto Rodrigo Lefèvre (1938-1984) e de uma terceira pessoa que ele preferiu não revelar.
“Nossa ação era política, não tinha nada a ver com terrorismo clássico. A bomba era contra o horror do Vietnã”, afirmou o professor. Na época Ferro integrava a ALN (Aliança Libertadora Nacional), uma dissidência do Partido Comunista Brasileiro.
Ferro foi também um dos participantes da explosão do avião ornamental exposto na praça 14 Bis, na região central de São Paulo. Na mesma reportagem, disse que a ação foi simbólica, uma vez que o avião, da Força Expedicionária Brasileira, havia atuado em confrontos durante a Segunda Guerra, contou.
“Tive uma participação real. Muita gente morreu. Toca muito fundo para mim falar sobre isso. Tem coisas que não foram ditas e vou continuar não dizendo. Não confio no sistema brasileiro”, disse. Em 2 de dezembro de 1971, Ferro foi preso pela Oban (Operação Bandeirantes) e afirmou ter sido torturado todos os dias, durante um mês.
Logo foi transferido para o DOPS onde ficou detido por três meses. Mandado para o presídio Tiradentes, ganhou a liberdade um ano depois, em 2 de dezembro de 1972 e logo obteve sursis e exilou-se na França.
Ele contou ainda que fazia a ponte entre a ALN e a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) do guerrilheiro Carlos Lamarca (1937-1971), o qual chegou a abrigar em sua residência por dois dias, em maio de 1970. “Por causa disso os torturadores diziam que iriam nos apagar. Escapamos graças às nossas famílias burguesas.” Ele era filho de um bem-sucedido empresário do setor imobiliário.
NA JUSTIÇA
Após a publicação da entrevista em 1992, Lovecchio, Mendonça Neto e Varella revisitaram 1968, o atentado, as suspeitas que caíram sobre eles. Tudo isso, além de uma situação financeira não confortável, motivou os três a procurarem a Justiça contra Ferro, numa ação conjunta de indenização. O caso era inédito. Pela primeira vez as vítimas de um atentado terrorista procuravam a Justiça para serem indenizadas.
“O caso [de buscas de reparação pelo atentado] deu uma virada quando a Folha publicou essa notícia em 1992, e eu procurei os meus direitos”, afirmou Lovecchio.
Um juiz chegou, em 1993, a conceder liminar determinando a busca e a apreensão de 17 trabalhos do artista plástico –as obras valiam US$ 191.200, segundo a galeria onde as obras estavam expostas.
Mas, no fim do processo, a Justiça deu ganho de causa ao artista. Os advogados de Ferro alegaram que, como o atentado ocorreu há mais de 20 anos, ninguém poderia ser processado pelas consequências do ato.
À época, o arquiteto até cogitou um encontro com os três jovens afetados pela bomba de 1968, mas, depois, o encontro não se manteve nem no discurso.
INDENIZAÇÃO
Lovecchio continuou a sua luta para receber reparação econômica. Em 2004, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou uma lei para conceder uma pensão especial a ele. Esse benefício faz com que receba hoje cerca de R$ 900 por mês.
Mas ele almeja obter uma indenização como as que foram pagas a militantes de organizações armadas e que foram anistiados. “Não pelo dinheiro, mas pelo valor moral.”
“Só queria ter o mesmo direito de outras pessoas que foram afastadas das suas funções, dos seus trabalhos na época da ditadura”, disse Lovecchio, lembrando mais uma vez que não pôde virar um piloto comercial onde ganharia um salário bem maior que os R$ 900.
O caso está na Justiça, sendo reanalisado pelo TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região). Em maio de 2017, o resultado foi decidido de forma unânime, contrário ao pedido, mas Lovecchio apresentou recurso. Como um dos desembargadores pediu vista, não há previsão para a retomada do julgamento. O que mantém a primeira bomba de 1968 em São Paulo ainda viva, 50 anos depois.
Colaboraram Jair dos Santos, Carlos Bozzo Júnior, Felipe Lima, Clodoaldo Paiva, Shirley Queiroz e Julio Cesar de Sousa