Há 55 anos, a morte tentou, mas não parou a obra de Hemingway
“Em 2 de julho de 1961, Ernest Hemingway colocou a carabina de dois canos apontada para o próprio pescoço e apertou os gatilhos, com um dos pés, puxando um fio atado à arma. Os dois gatilhos lhe explodiram a cabeça. Hemingway, um caçador experiente, não falhou ao disparar contra a presa final, ele próprio.”
Assim o correspondente da Folha em Nova York Paulo Francis abriu seu texto sobre os 25 anos da morte do escritor norte-americano que tirou a própria vida.
Hemingway esteve presente nas páginas da Folha desde 6 de outubro de 1943, quando a Folha da Manhã informa que “o famoso autor de ‘Por Quem os Sinos Dobram’ diz que [Hector] Bolitho, a quem dedicou todo um ensaio de um livro seu, é um ‘gênio jornalístico’, acrescentando que é um dos homens mais feios e mais inteligentes que a Inglaterra já produziu“.
Autor de “O Velho e o Mar” (1952), “O Sol Também se Levanta” (1926), “Por Quem os Sinos Dobram” (1940), “Adeus às Armas” (1929) e natural de Oak Park, Illinois (EUA), Ernest Miller Hemingway, até a sua morte, teve seu nome estampado nas páginas da Folha em notícias sobre suas obras e aventuras pelo mundo, assim como em propagandas de filmes e promoções de venda de seus livros.
Um dos episódios que mais chamam a atenção ocorre na África, quando é veiculada uma das inúmeras notícias de que Hemingway tinha morrido. Na ocasião, a Folha informa nos dias 25 e 26 de janeiro de 1954 que o escritor norte-americano tinha escapado de dois acidentes aéreos na sequência. O primeiro deles, quando um pequeno Cessna, em que Hemingway e a esposa, a ex-correspondente de guerra Mary Welsh, voavam sobre a Uganda, fez um pouso forçado na selva, a cinco quilômetros das cataratas de Murchison. O escritor, sua esposa e o piloto sobrevivem e, depois de passar uma noite em meio a rugido de feras, chegam até Butiaba. O casal toma ali outro avião. Ao levantar voo, o aparelho bate com as rodas num obstáculo e capota sobre uma plantação de juta, sendo imediatamente tomado pelas chamas. O escritor e a esposa se salvam por pouco. Depois disso, o escritor opta por viajar de carro.
Como bem escreveu Paulo Francis em 1986, coube a Hemingway “ter o gênio dele, ter mudado, literalmente, a maneira como escrevíamos no século 20, ter estado em todos os botequins onde gente fascinante se reunia, onde bebia do bom e do melhor, ter comido todas as ‘cuisines’ (em ‘The Garden of Eden’ [O Jardim do Éden] todos os menus e drinques são minuciosamente descritos), ter vivido em toda parte do mundo, ter tido tanto prazer na companhia de algumas mulheres lindas, ‘n’ amantes, ter sobrevivido a duas guerras mundiais (feriu-se gravemente na primeira, servindo numa ambulância. Daí o tedioso ‘A Farewell to Arms’ [Adeus às Armas], 1929)”, além de conquistar o Prêmio Nobel.
Além de participar das Guerras Mundiais, caçar na África, pescar em Cuba, participar de touradas e da Guerra Civil espanhola e ter se casado quatro vezes, Hemingway esteve presente nas páginas da Folha, sobretudo, devido à sua obra, que lhe rendeu prêmios, como o Pullitzer de Ficção-1953 e o Nobel de Literatura-1954 por “O Velho e o Mar”, quando o jornal o classificou como jornalista-repórter e analisou sua obra como reflexo de sua vida. Ao receber o Nobel, Hemingway se disse muito feliz, criticou “os críticos de crítica” e disse que esperava ver o prêmio ser dado a escritores de outras nacionalidades além da americana.
Foi destaque também quando defendeu o regime de Fidel Castro e quando não respondeu a um convite do Itamaraty para visitar o Brasil e até para realizar uma caçada em Goiás ou Mato Grosso.
Nos últimos anos de vida, porém, as notícias sobre Hemingway chamam mais a atenção pelo seu estado de saúde e desmentidos sobre sua morte.
Até que, em julho de 1961, o fim trágico, em que a Folha informa que “Não se esclarecerá se a morte de Hemingway foi suicídio ou acidente“, já que as autoridades decidiram não instaurar inquérito para apurar a morte do escritor. Na certidão de óbito do escritor, passa a constar apenas morte em decorrência de um ferimento na cabeça.
Também chama a atenção do jornal o fato de nenhuma personalidade ter ido ao funeral do escritor.
Em 1969, a Folha informa que 22 kg de manuscritos de Ernest Hemingway são reunidos em uma bibliografia intitulada “Os manuscritos de Hemingway”. Os trechos inéditos são conferidos pela viúva a dois professores de literatura de da Universidade da Pensilvânia, Phillip Young e Charles Mann. Na ocasião, os professores, que passaram seis meses avaliando os textos, conseguem reconstituir quatro novelas, 19 relatos longos, 11 contos e grande quantidade de poemas, notas e cartas. Parte do material encontrava-se num quarto de despejo num bar de Key West, na Flórida, e outra parte, num banco cubano. À época, a viúva ainda não havia liberado a publicação das obras, o que ocorre depois.
Uma coisa é certa: a morte não parou a obra de Hemingway.