Folha acompanhou vida de boias-frias durante mecanização das lavouras nas últimas duas décadas

Nas últimas duas décadas a Folha acompanhou como a crescente mecanização das lavouras afetou os trabalhadores sazonais, a maioria migrantes do Nordeste, em fuga da seca e pobreza para trabalhar em lavouras dos centros agrícolas do país.

Há 20 anos, o jornal informou que produtores de algodão do Paraná já substituíam o trabalhador por colheitadeiras. “O custo é de R$ 1/arroba, como custa o boia-fria, mas a vantagem é que você elimina outros gastos”, disse o agricultor Sadajiro Teshina, após alugar máquinas.

A evolução da tecnologia ameaçava boias-frias. E quem resistia se submetia a péssimas condições de trabalho, falta de equipamentos de segurança, moradias precárias e salários aquém do mínimo.

O boia-fria sofria até para ir à lavoura. Acidentes com ônibus ou caminhões com camponeses eram comuns, como em Altair (SP), em 1998, e Irajuba (BA), em 2000, quando 12 e 14 pessoas morreram, respectivamente.

Em agosto de 2008, a reportagem multipremiada da Folha “Os anti-heróis, o submundo da cana”, no caderno “Mais!”, investigou por dois meses a vida dos cortadores de cana em SP, Estado que detinha 60% da produção do Brasil.

Os repórteres Mário Magalhães e Joel Silva mostraram que, ainda que o progresso erguesse usinas de etanol com alta tecnologia, muitos dos 135 mil cortadores de SP –335 mil no país– ainda comiam a boia fria.

E, pela primeira vez em cinco séculos, que ao menos 50% da produção não seria colhida por mãos, mas por máquinas. Isso refletiu em aumento do esforço pelos boias-frias, o que gerou um aumento de mortes no campo.

Segundo a Pastoral do Migrante, de 2004 a 2007 foram 20 casos só no interior de SP. Um deles foi Valdecy de Lima, 38, da Usina Moreno, na região de Ribeirão Preto (SP). Ele morreu em 7 de julho de 2005, na roça, após acidente vascular cerebral. Em 17 de junho, cortara 16,5 toneladas.

Ao colher 11,5 toneladas dia, um trabalhador desfere 3.792 golpes de facão e faz 3.994 flexões de coluna.

“Para ser cortador de cana, tem que ter braço, porque, se não tiver, morre, ou de fome ou no canavial, de tanto trabalhar”, disse José Lúcio Oliveira, então com 33 anos, oriundo de Barra do Santo Antônio (AL) para atuar no interior do Estado de SP.

Se a produção do boia-fria subiu, sua remuneração caiu. Em 1985, o cortador em SP ganhava R$ 32 por dia. Em 2007, R$ 28,90, ao cortar 9,3 toneladas, 4,3 toneladas a mais do que em meados de 1980.

Em 2007, a socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva, da Unesp (Universidade Estadual Paulista), apontou que a vida útil do cortador de cana era de cerca de 12 anos, próxima à de escravos.

Segundo o Ministério do Trabalho, só em 2015 ao menos 1.111 pessoas foram libertadas de situações análogas à escravidão, a maioria delas no setor da agricultura (21%).