Confira uma das entrevistas mais contundentes de João Saldanha, que completaria cem anos hoje
Para lembrar os 100 anos de nascimento do jornalista, comentarista e ex-técnico da seleção brasileira, João Saldanha, responsável pela ida do time brasileiro à Copa de 1970, e demitido antes do início do Mundial, o Blog do Acervo Folha reproduz entrevista publicada em 2 de dezembro de 1979 no extinto suplemento cultural Folhetim, onde o polêmico cronista faz duras críticas à Loteria Esportiva, à ditadura e à relação entre futebol e política.
Nascido em 1917, em Alegrete (RS), João Saldanha morreu em 12 de julho de 1990, aos 73 anos, em Roma (Itália), onde participava da cobertura da Copa do Mundo daquele ano.
*
O REI ESTÁ NU
Folhetim, 2 de dezembro de 1979
Como técnico da Seleção Brasileira, o jornalista João Saldanha armou o time que conquistou, em 1970, o tricampeonato mundial. O time era formado, segundo expressão cunhada por ele mesmo, de “onze feras”. De fato, foi a derradeira seleção que permitiu jogadores criativos, dribladores, e um futebol alegre. Foi também a última vitoriosa.
Em entrevista à repórter Izilda Alves, João Saldanha reconhece que somos o país “rei do futebol”, mas ressalva: “o rei está nu”.
Saldanha – A política entrou violentamente no esporte na década de 70. A ditadura que veio, que se abateu sobre o Brasil em 1964, precisava de alguma forma de comunicação de massa. Ela não ia se comunicar com a massa, matando, torturando, prendendo, espancando. Por outro lado, as eleições estavam suspensas – aconteceram eleições, como em 1974, quando por sinal, eles levaram um tremendo banho, crentes que tinham feito um magnífico trabalho de comunicação de massa, através do esporte, através do futebol. Por causa disso, para tentar essa aproximação, deturparam, corromperam, e corrompem até hoje. Está corrompido o futebol, como outros setores e atividades.
Isso aconteceu também no cinema, aconteceu na escola com o decreto 477, porque seria um erro pensar que o futebol está fora do contexto da vida social do País. Ao contrário, está intimamente ligado. O esporte faz parte da cultura. A atividade física é indispensável a qualquer ser humano. Então, como todos esses setores da cultura sofreram violentamente, o futebol sofreu. Ele foi agredido, foi aviltado, foi até estuprado pelos homens do poder público, no açodamento de fazer relações públicas. Até se dizia: se a Arena vai mal, bote um time no Nacional. Acontece que a Arena continuou mal, tanto que eles tiveram que dissolver os partidos. A Arena foi preparada para ser primeiro lugar e chegou sempre em segundo. Segundo entre dois é último, então o jeito é dissolver. Se eles tivessem tido êxito – quando eu digo eles, eu falo das forças reacionárias que ocuparam o poder nesses últimos 15 anos – se eles tivessem tido algum êxito, eles não tinham feito tantos males ao futebol.
Nós vínhamos de uma época de ouro no futebol. Futebol tem características diferentes aqui no Brasil: ele é paixão popular, o nosso clima permite que se jogue o ano inteiro, que se jogue descalço. Então, por isso, a participação da massa é maior do que seria na Suécia ou num país frio. Então, eles vieram em cima disso, de uma força que atraía camadas de milhões e se estreparam. Mas se estreparam fazendo grandes males ao futebol. Estão terminando um Campeonato Nacional asqueroso, tão asqueroso que você vê troços dos mais sórdidos. Lá em Mato Grosso, o diretor de um clube disse que tinha subornado um juiz por 50 mil cruzeiros e tinha feito um depósito na conta do juiz. Aí o juiz gritou que ele não recebeu coisa nenhuma, que o depósito não foi feito porque ele não pôde impedir que pusessem o dinheiro na conta dele. Como poderiam ter posto na sua conta ou na minha – na minha nunca puseram porque eu não espalho o número de minha conta por aí, não é?
Como aconteceu com a cultura, a meu ver houve um retrocesso também no esporte. É claro, a ditadura sempre faz retrocesso. Aconteceu também um processo de corrupção violentíssima. Há um problema muito sério: hoje é dia 29, as rendas de ontem em todo o Brasil foram umas porcarias. Um jogo deu 25 mil cruzeiros, isso qualquer cinema faz; renda Flamengo e Bahia, dois grandes clubes, 23 mil pessoas. Mixaria, porque fim de mês está todo mundo duro, todo mundo vendendo garrafa. A crise afeta, violentamente, o futebol. Então, os clubes estão fazendo o seguinte: jogando três vezes por semana. Eu fiz, acompanhando o Flamengo, 22 pousos/decolagens nos últimos dez dias.
Enfim, a política entrou mesquinha, açodadamente, de forma incompetente no futebol, da mesma maneira como geriram os negócios do Brasil. Os êxitos da Petrobrás você pode somar aos êxitos do futebol e você tem o quadro da situação brasileira”.
FOLHETIM – Então, foi esse retrocesso no futebol, que não permitiu que surgissem novos craques?
SALDANHA – Sim, é lógico. Os craques estão aí, porque eles existem. Você tira o craque da quantidade de jogadores que o Brasil tem. Há um problema sério: os campos estão acabando. Em Copacabana, Ipanema e Leblon, tinha 16 campos de futebol. Não tem mais nenhum. Em São Paulo, ali pelo ABC tinha milhares e milhares de campos, A Gazeta Esportiva tirava três cadernos de anúncio de jogo por sábado e domingo, e tirava, na segunda, com o resultado, três cadernos. Depois, ela chegou quase a fechar, não tem mais anúncio de jogo, time do bairro contra o bairro tal, isso há 10 anos, 12 atrás. Há 20 anos atrás, então, era mais loucura. Onde tem a Ford de Vila Prudente, dali para diante, aquilo tudo era um parque imenso, com milhares de campos. Não tem nenhum.
Eu nomearia, com a maior certeza de ter êxito, os atuais dirigentes do futebol brasileiro como diretores do Instituto do Câncer. Claro, porque se eles acabam com o futebol, eles têm chance de acabar com o câncer. Então, pelo menos seriam beneméritos da coisa. Ah! Nomearia!
Com essa barbaridade de jogos, a que horas o jogador vai treinar? Há uma medida aí que merece louvores. O CND (Conselho Nacional de Desportos) está fazendo mil módulos – nós temos 4 mil municípios – para fazer em cada município um campinho de futebol, um campinho de basquete para estimular o esporte. Está bem, isso é saudável.
FOLHETIM – Apesar dessa crise, surgiram novos craques nesta década?
SALDANHA – Claro. Está aí o Zico, o Sócrates e outros. Acontece que eles não estão em condições nem de demonstrar a capacidade deles. Nós lutamos, batalhamos e conseguimos a lei de 72 horas de intervalo obrigatório entre duas partidas. Essa lei já existia, nós mesmos tínhamos conseguido essa lei. Eles diminuíram para 60, e para 48 horas. Então, de 48 em 48 horas um jogo é impossível. E como os nossos jogadores estão sofrendo esse desgaste permanente há 10 anos, é claro que tecnicamente eles caíram. Esse Júlio César, do Flamengo, é um monstro de jogador. O que esse cara fez lá na Europa deixou os homens estarrecidos: “Você é um monstro”. Você é o melhor jogador do mundo…” Ele não está nem na reserva do Flamengo, ele caiu de tal nível – jogo, jogo, jogo – machucou, depois voltou sem condições, mas ainda tentando. Ele tentou e quebrou a cara. Então, como o jogador não pode treinar, ele não pode se aprimorar. O Sócrates, por exemplo, ele atingiu o apogeu fabuloso na carreira de um jogador e está indo para os píncaros. Mas ele está sem forma física e não está podendo jogar. Então, cadê o craque? Ah, temos o Sócrates! Tá bom, então põe aí o Sócrates no crédito. Mas você não pode usar um crédito bloqueado na rubrica de crédito. O Zico teve uma distensão violenta, está voltando paulatinamente. Ele não tem atuado bem nos últimos jogos, não está podendo ainda, correr, está procurando recuperar a sua forma. Ele passou assim o ano inteiro. O Reinaldo, um grande craque, um monstro. Ele tirou os 4 meniscos e desligamentos e não sei mais o quê. Joga, mas uma partida e pára duas, três. E o Oscar, o zagueirão lá da Ponte Preta? É um dos melhores zagueiros do mundo. O Oscar não pode jogar, porque está com uma lesão ou distensão. Então, os craques são os mesmos. Esse campeonato é ridículo, um campeonato de 256 clubes. Nós somos o rei do futebol, mas o rei está nu. O que resume o futebol brasileiro no momento é uma esculhambação.
FOLHETIM – Quais os motivos desta desorganização nos calendários?
SALDANHA – O motivo é que o governo acha que dá pão e circo e está tudo resolvido. Mas não tendo pão, não adianta o circo. É preciso eliminar os déficits, eliminando-se os jogos deficitários, esses joguinhos michos. É uma vergonha, um monte de gente alheia ao esporte se enquistou dentro do esporte. O presidente da Federação Pernambucana está há 25 anos no cargo”, o Rubem Holffmeister, do Rio Grande do Sul, está há mais de 10, 16 anos; em São Paulo, dão tiro um no outro por causa do cargo. Tudo porque as federações tiram porcentagens sobre os jogos e são cornucópias, têm fábulas, mordomias, igual à Petrobrás. Oitenta e seis foram num avião Rio/Assunção, voo charter, fretado pela CBD (Confederação Brasileira de Desportos). Só 17 eram jogadores. Que é que os outros foram fazer lá? Oitenta e seis dirigentes do futebol brasileiro num ‘rega-bofe’, uma vergonha. O avião veio embora e alguns ficaram lá; depois voltaram de avião de carreira comum e com passagem paga pela CBD. Isso agora, quando nós fomos jogar em Assunção, há um mês atrás.
FOLHETIM – Saldanha, o que os dirigentes podem fazer, ou têm feito, para melhorar o calendário?
SALDANHA – Nada. Está uma briga. Eles estão reclamando porque o Conselho Nacional de Desportos baixou a lei de 72 horas que obriga a diminuírem os jogos. Ao diminuírem os jogos, eles diminuem os jogos deficitários; diminuindo os jogos deficitários, diminuem a fadiga dos jogadores. O que acontece, resumindo tudo, é que as ditaduras brasileiras caíram violentamente sobre o esporte. O governo, para fazer proselitismo, fazer demagogia, cai em cima do futebol, apresenta as entradas mais baratas do mundo, muita gente pensa que o Saldanha é incoerente porque ele faz cada onda e pede aumento das entradas de futebol. Peço, tranquilamente, sorrindo, porque é uma demagogia sórdida o que fazem com o futebol. Eles apresentam o preço barato do futebol, mas o feijão, o arroz, a carne seca, a farinha, vai tudo para os cornos da lua. Eu estou de acordo que eles façam barato o futebol, mas bem barato o custo de vida.
“Você veja, o aspecto demagógico no Brasil você encontra nos grandes estádios. Em Sergipe, tá lá, o Batistão. Uma cidade como Aracaju, de 105 mil habitantes, tem um estádio para 50 mil pessoas. Na Paraíba, tem dois estádios, dois monstros numa das cidades capitais mais pobres do mundo, onde o povo anda miseravelmente vestido e não se alimenta, estádios monstruosos. Esse próprio Maracanã já tem um produto de demagogia. A média de público do campeonato carioca é ridícula. Neste ano não chega a dez mil pessoas. Então, pra que esse troço? É pura demagogia. Para sair falando que é o maior e mais belo estádio do mundo. O maior é, mas o mais belo uma ova. É horrível, ainda não está pronto até hoje. O Maracanã representa a obra de fachada. E isso fizeram por todo o Brasil. Você vai em Goiânia, um estádio belíssimo para 80 mil pessoas, o Morumbi, para 130, 140 mil…
FOLHETIM – A Loteria Esportiva veio ajudar o futebol?
SALDANHA – A Loteria Esportiva está ajudando ao governo. Ao futebol, não. Loteria, em primeiro lugar, é característica de país pobre. E a Loteria Esportiva compete com o futebol. Além do mais, é um jogo que é um roubo. É um jogo em que a casa fica com 70 por cento do bruto, e rateia 30 por cento. Num rateio de 30, não há chance matemática de você ganhar. Então, a chance que você fica é uma chance no jogo, jogo que representa um contra um milhão, 533 mil possibilidades. Em roleta, já é duro um contra 35. De vez em quando, um cara acerta aí 1 milhão, 2 milhões, sai, divulgam bastante. A Loteria, em termos econômicos para o país, é criminosa: Ela arrecada um dinheiro que não tem retorno. E esse dinheiro que não tem retorno faz um buracos nas economias das pequenas e médias cidades.
Então, com 10 cruzeiros, o cara está participando do espetáculo. Aí ele não vai ao espetáculo. Basta ouvir no rádio o resultado. É um troço criminoso, do ponto de vista econômico para o país e do ponto de vista esportivo para os clubes. Qual o retorno que ele dá para os clubes? Para as passagens dos clubes no Campeonato Nacional. Então, vêm essas barbaridades: que é que adianta o Arapiraca vir jogar contra o Palmeiras, contra o Vasco da Gama? Ninguém vai ver o jogo. A Loteria paga um prejuízo. A Loteria enterra o futebol.
FOLHETIM – A Loteria Esportiva pode fazer com que torcedor perca o estímulo de ir ao campo?
SALDANHA – Claro, ele se transforma em apostador. Esse é o maior perigo. A Inglaterra proibiu a Loteria Esportiva porque o torcedor se transforma em apostador. E tem mais: uma vez um secretário do Corinthians acertou na loteria no dia em que o Corinthians perdeu um jogo para um time de Araraquara ou de Ribeirão Preto, eu não estou me lembrando bem. Naquele dia, o Corinthians perdeu. Como foi que o cara acertou? Porque jogou no outro time. Ele já não era torcedor do Corinthians, ele era apostador. O cara aposta contra seu próprio clube e aí perde a mística, e aí massacra o esporte. É um engodo a Loteria Esportiva. Ela criou uma série de mamatas e sopas na publicidade. As agências lavam a égua na publicidade. Ela criou uma série de seções nos jornais e revista, seções de palpites e isso e aquilo. E toda vez que eu escrevo sobre a Loteria Esportiva cortam.