Há 50 anos, ‘O Poder Negro’, peça com Antonio Pitanga e Ítala Nandi, era censurada no Brasil
“Um atentado ao decoro público.” Esse foi o argumento dado pela Censura Federal em 13 de dezembro de 1967 para justificar a proibição no Brasil da peça “O Poder Negro”, do autor norte-americano LeRoi Jones.
O espetáculo, originalmente chamado “Dutchman”, seria protagonizado pela atriz Ítala Nandi e pelo ator Antonio Pitanga, pai dos atores Rocco e Camila Pitanga.
Nandi já havia atuado em montagens antológicas, como “O Beijo no Asfalto” (1961), “Quatro Num Quarto” (1962), “Pequenos Burgueses” (1963) e o “Rei da Vela” (1967). Pitanga, ligado ao Cinema Novo e ator preferido de Glauber Rocha, integrara o elenco de pelo menos 15 longas, entre os quais “Bahia de Todos os Santos” (1960), “O Pagador de Promessas” (1962), “Ganga Zumba” (1963) e “Lampião, o Rei do Cangaço” (1964).
O ENREDO
“O Poder Negro”, conforme publicado à época na Folha “focaliza a história de Lula, uma loira prostituta militarizada que, ao entrar em um metrô de Nova York, procura humilhar ao máximo um negro [Clay], reduzindo-o a nada”. A discussão entre os interlocutores, repleta de insultos racistas por parte de Lula, termina de forma trágica, com o assassinato de Clay com uma facada desferida pela meretriz.
A peça de LeRoi Jones tenta salientar a incessante luta dos negros norte-americanos contra o racismo e destaca a truculência da polícia dos EUA contra os jovens afrodescendentes, ação que contribuiu para a criação, em 1966, do Partido dos Panteras Negras, em Oakland, no sul do Estado da Califórnia.
Ítala Nandi, que na ocasião enfatizou não se identificar em nada com a personagem, classificou Lula como uma mulher fria e violenta. “Ela não pretende o sexo, mas a agressão. É uma personagem neurótica e paranoica, como as criaturas de Tennesse Williams. Representa uma sociedade em diarreia”, resumiu a atriz.
O personagem interpretado por Antonio Pitanga, o jovem Clay, é caracterizado como um negro sem consciência de sua negritude e frágil na sua defesa. “Clay sofre o problema da dúvida, da não certeza se é branco ou negro. Ele acha que tem ‘alma de branco’ e como negro faz concessões”, contou Pitanga.
A CENSURA
A proibição da peça foi comunicada por telefone ao diretor do espetáculo, Fernando Peixoto, que considerou “um absurdo” a decisão da Censura Federal em cercear a montagem. “Não tem sentido essa medida, a peça tem livre trânsito nos EUA e alcança sucesso na Europa. Por que então uma atitude como essa, sem sentido, no nosso país?”
Peixoto, cuja peça era a primeira dirigida em São Paulo, declarou que recorreria para que a decisão fosse reavaliada pelo órgão. “Acho que ‘atentado ao decoro público’ é tentar esconder do Brasil um problema que todo mundo sabe existir nos Estados Unidos”, disse o diretor.
O AUTOR
Nascido em 8 outubro de 1934 em Nova Jersey, Everett LeRoi Jones, era poeta, escritor, ensaísta, ativista negro e professor do departamento de pesquisas sociais de uma universidade de Nova York.
Sua peça “O Poder Negro”, apresentada com grande êxito em países da Europa, como Inglaterra, França e Itália, já havia arrebatado nos EUA o prêmio “Obie Awards” de melhor encenação de 1964, ano em que o drama foi escrito. Um ano depois escreveu o manifesto “Black Art”, que tinha como intuito promover a autonomia dos negros na literatura.
Sempre radical em seus ideais de luta, em 1966, o autor foi preso e torturado quando liderava uma marcha contra a guerra do Vietnã. Na ocasião ficou detido por cinco meses.
Com diversos livros publicados, lançou no Brasil, em 1967, a obra “O Jazz e Sua Influência na Cultura Americana”, que esmiúça a relevância do gênero sobre a vida da população negra dos EUA.
O assassinato de Malcolm X dois anos antes, levou LeRoi a adotar mais tarde o pseudônimo Amiri Baraka, quando converteu-se ao islamismo.
Apoiador do regime cubano de Fidel Castro e tendo sido um dos poucos negros a integrar a Geração beat de Allen Ginsberg, o ativista morreu em 9 de janeiro de 2014, em Nova York, aos 79 anos.
O MANIFESTO
Em 13 de fevereiro de 1968, quando o “O Poder Negro” ainda se encontrava censurado, a Folha publicou extensa reportagem sobre o descontentamento da classe teatral com as então recentes proibições e restrições praticadas pela Censura Federal contra a arte.
A íntegra de um manifesto elaborado pela classe, cujo trecho menciona o imbróglio envolvendo a peça de Leroi Jones, ganhou grande espaço no jornal: “[…] a peça ‘O Poder Negro’, foi proibida pela Censura Federal após três meses de exames pelos seus censores, que pretenderam fazer até mesmo a verificação da fidelidade da tradução do texto original […]”. No mês seguinte, outras quatro montagens foram proibidas.
A ESTREIA
Na noite de 8 de agosto de 1968, após quase um ano de embargo pelo órgão censor, ocorre, finalmente, a tão aguardada estreia.
Com um coquetel oferecido à imprensa e um vagão de metrô construído pelo cenógrafo Marcos Flaksman, o primeiro dia de encenação foi um ato beneficente, em favor da Escola Israelita Brasileira.
Um dia depois, a peça foi apresentada apenas a convidados e à crítica especializada. E em 10 de agosto, houve a estreia oficial, aberta ao público.
A atriz Ítala Nandi, que personificou a loira prostituta Lula, destacou à imprensa que sua personagem, além de ter sido o seu melhor papel até então, lhe proporcionou “uma riquíssima vivência interior”.
Antonio Pitanga, que representou o negro humilhado Clay, disse que “O Poder Negro” o fez recusar o convite do cineasta Glauber Rocha para a atuação no clássico “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, lançado em 1969.