DIVÓRCIO, 40: Igreja Católica pressionou políticos para manter matrimônio indissolúvel
“Para os católicos, em qualquer legislação, o sacramento do matrimônio é indissolúvel.”
“[…] a autoridade eclesiástica, se julgar oportuno, poderá excomungar o divorciado.”
As frases acima dão uma mostra do papel da Igreja Católica em 1977, quando a Lei do Divórcio foi aprovada. Elas foram proferidas, respectivamente, por dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016) e dom Aloísio Lorscheider (1924-2007), secretário-geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) na época.
A cúpula católica entrou naquele ano disposta a impedir a aprovação de qualquer legislação divorcista. “A Igreja sabe que, com o reinício dos trabalhos legislativos, novos projetos serão apresentados no Congresso e, por isso, quer sair na frente”, disse Lorscheider.
O religioso se referia ao documento “Fraternidade e Família – Mensagem dos Bispos às Famílias do Brasil”, divulgado em fevereiro de 1977, após o encontro anual da CNBB, em Indaiatuba (SP).
No comunicado, a Igreja chama para si a responsabilidade de orientar os fieis para “o revigoramento da família em nossa pátria” e enfatiza que “o bem comum” deve ser respeitado, “não somente pela consciência do cidadão, como também pela legislação”.
Segundo Lorscheider, “a Igreja, quando defende a família, defende uma instituição natural, e não apenas a família católica”. “Somos contra o divórcio, inclusive dos pagãos.”
Por outro lado, de acordo com levantamento feito pelo “Jornal da Tarde” naquele ano, a grande maioria das igrejas evangélicas, centros espíritas e seguidores de outras religiões não se opunha à lei.
A pauta sobre a dissolução do matrimônio entraria em votação em junho, através de uma comissão mista do Congresso.
O assunto não distinguia oposição e situação. Existiam parlamentares da Arena –governistas– e do MDB –oposicionistas– favoráveis ao assunto, assim como alas contrárias, de ambos os partidos. Já o governo federal, representado na figura do presidente militar (foto acima) Ernesto Geisel (1907-1996), matinha posição neutra.
PRESSÃO DO CLERO
Com a aproximação da apreciação pelos congressistas, a campanha de líderes católicos ganhou cada vez mais espaços durante missas e outras celebrações. Constantemente a opinião destes era exposta nos jornais da época.
Deputados e senadores também foram pressionados por integrantes da Igreja, inclusive com a criação de uma suposta lista negra de divorcistas.
“Penso que as paróquias devem anotar a verdadeira mentalidade dos que se julgam representantes do povo. Por anotar, quero dizer: conservar listas dos que votaram a favor e contra o divórcio, para distinguir bem aqueles que estão afinados com nosso pensamento e confrontar suas posições por ocasião das campanhas eleitorais”, disse Lorscheider, que em outra oportunidade chegou a divulgar uma lista de advertências para quem quisesse se divorciar:
“O divorciado não poderá, enquanto estiver nessa condição, confessar-se. Não poderá, licitamente, aproximar-se da mesa eucarística, nem ser padrinho ou madrinha. O divorciado, se não arrependido, não poderá receber a unção dos enfermos e o viático. […] Não poderá ser rezada missa, a não ser em caráter particular, para o divorciado. Além disso, a autoridade eclesiástica, se julgar necessário, poderá excomungá-lo.”
Posição esta que foi criticada pela Folha em editorial publicado em 22 de junho de 1977: “Não pode se admitir como construtivo, por exemplo, ameaçar divorcistas com a possível privação de sacramentos […] Tais advertências sombrias, talvez inspiradas pelo ardor do clímax de uma campanha exaustiva, expõe a Igreja ou a descrédito, como decorrência de eventual recuo futuro, ou a uma obstinada luta punitiva, incompatível com o espírito de amor e perdão do Evangelho”.
Alguns parlamentares desabafaram sobre a pressão exercida pelos religiosos. “Este Congresso está sendo pressionado de todas as maneiras. Temos recebido cartas, telegramas, cartões e até telex oficiais, apelando para que voltemos atrás e não sejamos favoráveis ao divórcio”, disse o deputado Célio Marques Fernandes (Arena), que desafiou: “Domingo irei comungar na catedral de Brasília e duvido que algum padre vá me negar a hóstia sagrada”.
RESISTÊNCIA POLÍTICA
Mas no Congresso também haviam aqueles contrários à aprovação da emenda. Em 14 de junho, o senador Ruy Santos (Arena), relator da comissão mista, fez alerta aos colegas.
“Santo Agostinho disse: ‘O demônio é quem fez o divórcio’. Se o divórcio vier, virá depois o aborto legalizado e, depois, a prostituição legalizada. E será o fim da família e a expressão ‘família’ terá de ser substituída por outras como “da junção”, do “companheirismo.”
No entanto, segundo a reportagem da Folha enfatizou, talvez o parlamentar nunca tivesse sido tão vaiado em sua vida como no dia em que expôs sua opinião antidivorcista.
No dia seguinte, o divórcio foi aprovado, em primeira discussão, por 219 votos a favor e 161 contra. Franco Montoro (MDB), líder da oposição no Senado, e outros 42 políticos não compareceram à sessão.
A última batalha dos divorcistas estava marcada para o dia 23 de junho. Foi quando rumores de que Igreja e governo haviam feito um pacto pela não aprovação.
“O presidente Ernesto Geisel permanece e permanecerá inteiramente imparcial na questão do divórcio, e não poderia ser de outra forma.” A declaração, dada pelo chefe da Assessoria de Imprensa da Presidência, o coronel Toledo de Camargo, foi para desmentir o burburinho que ganhava cada vez mais força no Congresso e gerava embates e questionamentos entre os políticos.
O líder do governo na Câmara, o deputado arenista José Bonifácio, considerado católico fervoroso e totalmente favorável ao matrimônio indissolúvel, ia a público com frequência para negar quaisquer boato de um acordo entre Estado e católicos.
A CNBB também desmentiu que houvesse qualquer tipo de manobra com o Executivo federal.
Desde o início das discussões, Geisel, que mesmo não tendo ido a público para dar declarações sobre o tema, através de seus porta-vozes sempre deixou clara a posição de que cada parlamentar deveria decidir “de acordo com a própria consciência”.
E assim veio a segunda votação para derrubar qualquer hipótese de conluio entre religiosos e governo. O divórcio foi aprovado por 226 votos contra 159, 14 a mais que do o necessário. No dia 28 de junho, o presidente do Congresso, Petrônio Portela, assinou a promulgação da emenda constitucional nº 9, que tornava dissolúvel o vínculo matrimonial.
Após a aprovação, a pressão da Igreja ainda existia, mas foi diminuindo gradualmente.
O caminho estava aberto para que, no dia 25 de agosto, os senadores Nelson Carneiro e Acioly Filho apresentassem um projeto de lei com a finalidade de regulamentar o divórcio.
A partir disso, as discussões que se estenderam entre as duas casas do Congresso se deram apenas em torno de alterações ou não de artigos.
A aprovação pelo Senado aconteceu na madrugada de 4 de dezembro de 1977. Já a sanção presidencial, sem alterações no texto enviado, foi efetuada no dia 26 de dezembro pelo presidente Geisel, um adepto do luteranismo.
Vale ressaltar que dom Paulo Evaristo Arns e dom Aloísio Lorscheider, personagens citados no texto, apesar de contrários ao divórcio na época, lutaram contra a ditadura e ficaram reconhecidos como líderes progressistas da Igreja Católica no Brasil.