Há 15 anos, morria dona Zica, ícone da Mangueira e idealizadora do cultuado restaurante Zicartola
Em 22 de janeiro de 2003, o Carnaval amanheceu desolado com a morte, aos 89 anos, de dona Zica, viúva do compositor Agenor de Oliveira, o Cartola, e um dos talismãs da escola de samba Estação Primeira de Mangueira.
Era por volta das 8h da manhã de uma quarta-feira quando a filha da mangueirense, Glória Regina, que acompanhava a mãe em casa no morro da Mangueira, a chamou para tomar remédios como fazia todos os dias. Aparentemente desfalecida, Zica não respondeu à filha, que logo pediu por socorro. Mas era tarde. Uma parada cardiorrespiratória interrompeu a trajetória de uma das pérolas da Velha Guarda da escola verde e rosa.
Dona Zica morreu a duas semanas de completar 90 anos, quando lançaria o seu primeiro livro de culinária, “Dona Zica, Tempero, Amor e Arte” (editora Fábrica de Livros), que reúne receitas feitas por ela ao longo de 80 anos de cozinha. Familiares e amigos haviam até programado uma grande festa para celebrar seu aniversário.
Seu corpo foi velado na quadra da Mangueira, como era o seu desejo. Cerca de mil pessoas compareceram à cerimônia. O sepultamento foi realizado no Cemitério São Francisco Xavier, na zona norte do Rio, ao som de “Exaltação à Mangueira” (Enéias Brites e Aluísio Costa), hino da agremiação da qual ela fazia parte desde a fundação, em 28 de abril 1928.
INTERNAÇÕES
Dona Zica andava debilitada desde 1997, quando foi internada por causa de uma descompensação cardiovascular, na clínica Semeg, na Tijuca (zona norte do Rio). Em 26 de julho de 2000, uma crise hipertensiva motivou outra internação, desta vez no hospital Salgado Filho, no Méier, também na zona norte da capital fluminense.
Na ocasião, em menos de dez dias, ela perdera uma sobrinha e a eterna amiga e baluarte da Mangueira, Dona Neuma (1922-2000), filha de Saturnino Gonçalves, o Seu Saturnino, primeiro presidente da escola de samba e um dos fundadores, ao lado de Cartola, Carlos Cachaça, Abelardo da Bolinha, Zé Espinguela, Seu Euclides, Pedro Paquetá e Seu Maçu.
Em 2002, Zica foi internada cinco vezes. Em uma delas, foi parar na CTI (Centro de Terapia Intensiva) do hospital São Vitor, na Tijuca (Rio), onde entrou com quadro de pneumonia e edema agudo em um dos pulmões. Ela era hipertensa, diabética e já havia sofrido um princípio de derrame em 1988.
O CARNAVAL E A VIDA NO MORRO
Dona Zica nasceu Euzébia Silva de Oliveira, em 6 de fevereiro de 1913, no bairro da Piedade (zona norte do Rio). Mudou-se para o Morro de Mangueira aos 4 anos, acompanhada da mãe, a lavadeira Gertrudes Efigênia dos Santos, e de quatro irmãos. Seu pai, Euzébio da Silva, funcionário da estação da Central do Brasil, morreu um ano antes.
As adversidades sociais interromperam boa parte da infância da pequena Euzébia. Aos 7 anos, para ajudar no sustento da família, teve que trabalhar como empregada doméstica na casa de uma das patroas da mãe, época em que “era tratada como escrava”, conforme dizia em entrevistas.
Zica tinha 15 anos quando desfilou pela primeira vez na Mangueira, na ala das baianas. Desde então, nunca mais parou.
Saudosista, sempre recordava com emoção dos primórdios da escola e de seus blocos embriões, como os da Tia Tomázia, da Tia Fé, do Senhor, dos Aregueiros (bloco masculino liderado por Cartola) e do Mestre Galdino, além do Rancho Príncipe das Florestas.
Aos 19, dona Zica casou-se com o fundidor Carlos Dias do Nascimento, com quem teve seis filhos (um adotivo). Dois deles morreram com enfermidades durante a infância. Ela ficou viúva de Carlos em 1948, aos 35 anos.
CARTOLA E ZICARTOLA
Dona Zica conhecia Cartola desde os primeiros anos de Mangueira, mas o flerte entre o dois começou três décadas depois, em 1953, na casa do compositor e sambista Carlos Cachaça, que era casado com Clotildes, irmã da mangueirense. Cartola, também viúvo, logo passou a morar com Zica.
Em outubro de 1964, após uma década de noivado, os dois se casaram em cerimônia realizada na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, no Rio. Em celebração ao matrimônio, Cartola compôs “Nós Dois”. A união durou até a morte do compositor, em 1980.
Foi dona Zica quem inspirou alguns dos clássicos do marido, entre os quais “As Rosas Não Falam”, “Tive Sim” e “O Sol Nascerá”, este em parceria com Elton Medeiros. Os dois moraram no morro até 1978, depois se mudaram para o bairro de Jacarepaguá, na zona oeste do Rio.
Em julho de 1963, o casal fundou o cultuado bar e restaurante Zicartola, no número 53 da rua da Carioca, na praça Mauá, considerado um dos principais redutos de resistência da cultura brasileira.
O Zicartola reuniu artistas de peso, sobretudo do cenário do samba, como os compositores Zé Keti (1921-1999), Nelson Cavaquinho (1911-1986), Elton Medeiros, Nelson Sargento, Paulinho da Viola (que lá ganhou o seu primeiro cachê como músico), Vinicius de Moraes (1913-1980), Nara Leão (1942-1989) e Hermínio Bello de Carvalho, além de personalidades de outras vertentes da arte, como o cinema, o teatro e a televisão.
O local, porém, durou menos de três anos. Problemas na administração culminaram em seu fechamento em maio de 1966. Em entrevista ao programa Roda Viva, exibido na TV Cultura em 1994, dona Zica contou, rindo, que as “penduras” dos amigos foram uma das causas para o fim do reverenciado refúgio de bambas.
ZICA MUSICAL
Embora não fosse cantora e tampouco compositora, dona Zica deixou pelo menos três registros musicais. Em 1998, gravou “Capital do samba” (Zé Ramos), no LP “Chico Buarque de Mangueira” (BMG), uma reverência de Chico aos velhos compositores da escola. Depois cantou “Chega de demanda” (Cartola e Paulinho Tapajós), que entrou no disco “Velha Guarda e Convidados”( Nikita Music).
Em 1976, ao lado de Cartola, gravou o samba “Sala de Recepção”, uma homenagem à Mangueira lançada no segundo disco do marido, o da capa em que o casal aparece na janela de casa.
O DESTINO DO CARNAVAL
Em 1980, em entrevista à Folha, a carnavalesca fez duras críticas às mudanças na festa mais popular do país. “A evolução moderninha está desvirtuando o carnaval, não é mais aquele samba que a gente sentia dentro da gente, agora é pra comércio, para ganhar dinheiro, não é aquele samba de paixão”, bradou.
Apesar dos pesares e das discordâncias, a maestrina verde e rosa sempre manteve a mesma adoração intensa pelo Carnaval, em especial pela Mangueira, escola da qual representou com o mesmo sorriso contagiante por quase oito décadas de dedicação e folia.