Há 100 anos, nascia Jacob do Bandolim, um dos grandes gênios do choro
“O som natural do bandolim é profundamente irritante. Por isso, procurei modificá-lo: passei a tocar com o braço e a mão direita apoiados no instrumento, além dos toques especiais da palheta.”
Assim o compositor e exímio solista de choro Jacob do Bandolim traduzia a relação que mantinha com o instrumento que o alçou ao posto de maior bandolinista do país e um dos principais expoentes do choro ao lado de Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Sátiro Bilhar, Altamiro Carrilho, Waldir Azevedo e outros.
Se estivesse vivo, Jacob estaria completando um século de vida nesta quarta (14).
Para comemorar o centenário de nascimento do compositor, o Sesc SP promove nos dias 17 e 18 deste mês o show “100 anos de Jacob do Bandolim”, que contará com a presença dos bandolinistas Hamilton de Holanda, Danilo Brito, Fábio Peron, Izaías Almeida e Milton de Mori, que serão acompanhados por Carmem Queiroz (voz), Gian Correa (violão de 7 cordas), Rafael Toledo (percussão) e Roberta Valente (pandeiro).
No dia 21 de fevereiro, a Casa do Choro, no Rio, inaugura a série de shows e exposição “Jacob 100 anos”, que terá entre os convidados Hamilton de Holanda, Luis Barcelos, Pedro Amorim e o veterano bandolinista Déo Rian, além da nova formação do conjunto Época de Ouro, com o qual Jacob gravou uma de suas principais obras, o LP “Vibrações” (1967), que abriu caminhos para a modernização do chorinho.
Autor de grandes clássicos do cancioneiro brasileiro, onde transitou entre a valsa, o frevo, a polca, o samba e sobretudo o choro, Jacob do Bandolim compôs músicas que entraram para a história como “Noites Cariocas”, “Assanhado”, “Treme-Treme”, “Doce de Coco”, “Bole-Bole”, “Remelexo” e “Vibrações”, entre outras.
Como instrumentista, participou de gravações antológicas da MPB. Em 1941, integrou o grupo de músicos que acompanhou Ataulfo Alves nos registros de “Ai, que saudades da Amélia” (Ataulfo Alves e Mário Lago) e “Leva Meu Samba” (Ataulfo Alves). Esteve também com Nelson Gonçalves na gravação de “Marina”, de Dorival Caymmi.
Entre suas interpretações memoráveis estão “Ingênuo” (Pixinguinha e Benedito Lacerda), “Lamentos” (Pixinguinha) e “Brejeiro”, de Ernesto Nazareth, compositor para o qual prestou tributo em 1952, com o lançamento de três discos em 78 RPM. A homenagem possibilitou o resgate da musicalidade de Nazareth no então novo cenário do choro.
Foi Jacob do Bandolim quem também revelou a cantora Elizeth Cardoso, após ouvi-la cantar na casa do amigo Jaime Cardoso, pai da cantora. “Levei a menina para a rádio Guanabara, onde estreou em 18 de agosto de 1936, no Programa Suburbano”, contou o músico em entrevista.
Incansável pesquisador da música brasileira e disciplinado na busca pelo aprimoramento e pela técnica em sua maneira de tocar bandolim, Jacob foi o responsável único por ter abrasileirado o instrumento, a ponto até de incorporá-lo em seu pseudônimo artístico.
Jacob do Bandolim nasceu Jacob Pick Bittencourt, em 14 de fevereiro de 1918, no sobrado de número 97 da rua Joaquim Silva, no tradicional bairro boêmio da Lapa, no Rio. Ele era filho único da polonesa Raquel Pick e do farmacêutico capixaba Francisco Gomes Bittencourt.
A interação com a música se manifestou bem cedo. Aos cinco anos, ficou de castigo no colégio por ter feito a segunda voz durante a execução do Hino Nacional.
Com 12 anos, foi presenteado pela mãe com um violino, mas não se adaptou à peça. “O violino não resistiu muito tempo, pois eu não gostei do instrumento e muitas cordas se arrebentaram com o mau trato”, contava o músico.
Logo pediu à mãe que trocasse o violino pelo bandolim, comprado na tradicional loja de instrumentos musicais Guitarra de Prata, frequentada por nomes como Pixinguinha, Ary Barroso, Paulo Moura e Baden Powell. Centenária, a loja baixou as portas em novembro de 2017, aos 121 anos.
PRIMEIRO CONTATO COM O CHORO
A primeira vez em que Jacob ouviu o gênero choro, ele tinha 13 anos. Era a música “É do que há”, do compositor e solista Luiz Americano, cujas ondas sonoras ecoaram da janela de um prédio em frente à sua casa, onde morava uma executiva da gravadora RCA Victor.
Anos mais tarde, o mesmo Luiz Americano o convidaria para se apresentar na rádio Phillips, depois de vê-lo dedilhar um bandolim em frente a uma loja de discos no Rio. Uma das versões diz que Jacob se atrasou para a apresentação. A outra conta que o bandolinista faltou ao compromisso por se sentir inseguro em se apresentar.
Em 1933, porém, com 15 anos, estreou como amador na rádio Guanabara, com o choro “Aguenta a Calunga” (Atílio Grany), acompanhado pelos amigos do Conjunto Sereno.
No ano seguinte, a desenvoltura e o talento do músico, que era autodidata, o levaram ao 1º lugar do “Grande Concurso dos Novos Artistas”, promovido pela rádio Guanabara, onde havia estreado como instrumentista. Foi nesse período que Jacob passou a acompanhar grandes artistas da época, entre os quais Noel Rosa, Lamartine Babo e Carlos Galhardo.
Mesmo estando muito próximo de nomes relevantes da música brasileira, o músico complementava sua renda com empregos distintos durante o dia. Vendedor pracista, atendente de farmácia e corretor de seguros foram algumas das ocupações extras do bandolinista.
COMPOSITOR INICIANTE, FUNCIONÁRIO PÚBLICO E PAI DE FAMÍLIA
A estreia de Jacob como compositor foi com “Si Alguém Sofreu”, gravada pela primeira vez pela sambista carioca Aracy de Almeida, uma das intérpretes preferidas de Noel Rosa, assim como Marília Batista.
Em 1940, aos 22 anos, o músico casou-se com Adylia Freitas, uma jovem que conheceu em Jacarepaguá e com quem teve dois filhos: o polêmico jornalista e compositor Sérgio Bittencourt (1941-1979) e a grande divulgadora e guardiã da obra do pai, a cirurgiã dentista Elena Bittencourt (1943-2011), fundadora do Instituto Jacob do Bandolim, hoje presidido pelo bandolinista Déo Rian.
No mesmo ano, após prestar concurso público, Jacob foi nomeado para ocupar o cargo de escrevente juramentado da Justiça do Rio de Janeiro. Depois passou a escrivão titular na 11ª Vara Criminal do Rio, cargo que ocupou até o fim da vida em paralelo com a música.
Em 1942, ao lado dos violonistas César Faria (pai de Paulinho da Viola) e Claudionor Cruz, somados aos virtuosos instrumentistas Candinho (bateria) e Leo Cardoso (afoxê), integrou o “Conjunto da Rádio Ipanema”.
CONTINENTAL E RCA VICTOR
A primeira gravação como solista foi em um de 78 RPM, pela Continental, em 1947, com a valsa “Glória” (Bonfiglio de Oliveira) e o chorinho “Treme-Treme”. Ainda na Continental gravou um disco com o Regional de César Faria, contendo a valsa “Salões Imperiais” (composição sua) e o choro “Flamengo”, de Bonfiglio. No último trabalho pela Continental, em 1949, registrou seu chorinho “Cabuloso” e a valsa “Amorosa”, de Joaquim Calado.
Contratado em 1949 pela RCA Victor, gravou, entre outras composições próprias, “Dolente” (1949), “Choro de Varanda” (1950), “Vale Tudo” (1951), “Doce de Coco” (1951), “Eu e Você” (1952), “Feitiço” (1954), “Alvorada” (1955), “De Limoeiro a Mossoró” (1956) e “Velhos Tempos” (1959), todas em 78 RPM.
Em 1954, Jacob do Bandolim ganhou o Troféu Guarani de melhor solista do ano em cerimônia no Teatro Paramound, em São Paulo. Inclusive é deste evento o único registro em vídeo que se tem de Jacob tocando bandolim. As imagens, guardadas na Cinemateca Brasileira, foram descobertas em 2016, após mais de 50 anos de procura.
Nos anos 1960, o músico lançou cerca de dez LPs. “Valsas Brasileiras de Antigamente” (1960), “Chorinhos e Chorões” (1962), “Valsas e Choros Evocativos” (1962), “Jacob Revive Sambas para Você Cantar” (1963), “Assanhado” (1966) e “Era de Ouro” (1967), além da obra-prima “Vibrações” (1967).
No ano de 1968, as históricas apresentações que fez no Teatro João Caetano, no Rio, ao lado de Elizeth Cardoso, Zimbo Trio e Época de Ouro, resultaram no lançamento de dois volumes de grande destaque na carreira do compositor, os LPs “Elizeth Cardoso, Jacob do Bandolim, Zimbo Trio e Época de Ouro”, pelo selo MIS.
SARAUS EM VINIL
Em 1971, a RCA lançou o LP “Os Saraus de Jacob”, que contém gravações realizadas entre setembro e dezembro de 1968 dos saraus que o músico costumava promover em sua casa na famosa rua Comandante Silva, em Jacarepaguá, no Rio. Lá, além intelectuais, políticos e jornalistas, o músico reuniu personalidades como Pixinguinha, Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, Canhoto da Paraíba, Ataulfo Alves, Dorival Caymmi e até o pianista russo Sergei Dorenski.
AGONIZA MAS NÃO MORRE
Em 1967, em depoimento prestado ao MIS (Museu da Imagem e do Som), Jacob do Bandolim admitiu que o chorinho estava morrendo e sugeriu a criação de novos regionais como o que classificou de única solução para que se evitasse “o fim de um estilo de samba de concepção rítmica e fraseado melódico bastante particulares”.
Em 13 de agosto de 1969, um ataque cardíaco –o terceiro sofrido em menos de dois anos–, abreviou a trajetória do eminente bandolinista, que morreu aos 52 anos, na varanda de sua casa em Jacarepaguá, na zona norte do Rio.
O músico havia acabado de voltar do bairro de Ramos, depois de uma visita à casa do ídolo e parceiro Pixinguinha, que passava dificuldades na época. Jacob sempre quis gravar um LP só com composições de Pixinguinha e sentiu que o momento era propício para a feitura do antigo projeto. Seu propósito era reverter toda a renda do disco ao rei dos “chorões”.