Há 50 anos, investida policial em favela de São Paulo matou menino de 16 anos

Luiz Carlos Ferreira

“Este menino tinha um primo de 16 anos que se chamava Adão. Andavam juntos na favela Mimosa, em Vila Gustavo. De repente, a polícia chegou à procura de um marginal. Houve tiros dados a esmo. Adão correu, e logo adiante caiu morto. Agora, a lágrima de seu primo rola na face de uma criança que não entende direito por que estas coisas acontecem.”

O parágrafo acima, publicado com destaque da edição da Folha de 16 de fevereiro de 1968, resumia mais uma das tragédias ocorridas nas diversas favelas brasileiras.

Antonio Fabrine Donizeti, irmão de Adão, o menino morto na favela Mimosa  (foto: 15.fev.1968/Folhapress)

Eram 22h do dia 14 de fevereiro de 1968. Estava muito escuro quando uma “perua” da polícia entrou na favela Mimosa, no bairro de Vila Gustavo, na zona norte da capital paulista.

Dentro do veículo, além do motorista Arlindo Cesário da Silva, estavam os investigadores Paulo Novi e Carlos Faria Porto, o inspetor da divisão da Guarda Civil, Antonio Vicente, os policiais civis Alcebiades Marsola e Arnaldo Tobias e o comerciante português Francisco Carmelino Sagulo, dono de um bar e de um açougue próximo à favela.

Com eles, também no veículo, estava Euclides Lourenço, conhecido como Tico, que fora preso dentro de sua casa na mesma região. Ele havia confessado à polícia ter roubado o açougue de Carmelino, com os amigos “França” e “Veríssimo”, que naquele momento eram procurados pela polícia.

Logo que os policiais adentraram a favela, o ajudante de pedreiro Adão Fabrine Donizeti, 16, seu irmão Antonio, 11, e um primo, levavam sacos de roupas para o barraco de uma vizinha, Neuza Ferreira dos Santos.

”Nós fomos à noite levar sacos de roupa para o barraco de Dona Neuza. A cunhada dela viajou e deixou a roupa    lá em casa para minha mãe lavar”, disse Antônio.

Repentinamente, ouviram-se disparos. Assustado, Adão, que tinha medo da polícia, correu em direção ao barraco de Neuza. Chegando à frente da casa da vizinha, foi atingido por um tiro nas costas, na altura dos rins.

Ele ainda tentou pular uma cerca de arame farpado na casa ao lado, mas fora atingido por outro disparo, e acabou morrendo no local.

Antonio Fabrine, irmão de Adão, fala com jornalistas na favela Mimosa (foto: 15.fev.1968/Folhapress)

Durante os tiros, Neuza saiu do barraco aos gritos: “Não atirem que vocês vão matar minhas crianças”. Seus quatro filhos, que dormiam no momento do tiroteio, assustados com os estampidos, acordaram e começaram a chorar. Neuza disse ter ouvido Adão pedir socorro três vezes. Apavorada, ela não viu mais o que aconteceu.

No dia seguinte, na casa de Adão, enquanto a mãe chorava a perda do filho, o irmão da vítima, Antonio, que presenciou a tragédia, contava aos repórteres como tudo aconteceu.

O menino disse que os disparos que tiraram a vida do irmão foram efetuados por um homem alto e forte, de camisa clara e calça azul escura.

Ao ouvir o filho falando com a imprensa, Maria Aparecida aproveitou para contar aos jornalistas que enquanto ela chorava em frente à casa da vizinha no momento dos tiros, o suspeito descrito pelo filho, o investigador Paulo Novi, de forma rude, mandou que ela saísse do local.

Segundo Aparecida, o investigador ainda disse o seguinte: “O coitadinho que a senhora fala é um vagabundo. Moço de 16 anos também morre.” Ao ouvir as palavras do policial, ela desmaiou.

Irmão de Adão Fabrine, Antonio, fala com a imprensa sobre a morte do irmão ajudante de pedreiro  (foto: 15.fev.1968/Folhapress)

Aos repórteres, Paulo Novi disse que não efetuou qualquer disparo contra Adão. Ele contou ainda que Maria Aparecida, a mãe da vítima, gritava muito quando ele tentou deter seu outro filho, que tomava conta dos sacos de roupa após os disparos. “Mandei a mulher embora e disse que se ela não se calasse a levaria para a perua”, contou o investigador. Depois, disse que a viu rolando no chão aos gritos de “mataram o meu filho”. “Só depois me contaram que um moço morrera com os tiros e que aquela era a sua mãe”, defendeu-se o investigador.

Novi declarou também que, no momento da operação, o comerciante Francisco Carmelino, que acompanhava os policiais, havia efetuado muitos tiros durante a ação. Um dos jornalistas pediu ao investigador para que deixasse fotografar sua arma, mas Novi esquivou-se em direção ao carro da polícia e desapareceu.

Carmelino, por sua vez, quando procurado na tarde do dia seguinte ao crime, não se encontrava em seu açougue, que ficava na avenida General Jerônimo Furtado, perto da favela.

O delegado Dangler Travassos Guimarães, titular da Delegacia de Vila Gustavo, disse que abriria um inquérito para ouvir os policiais e o comerciante.

Antônio e Tico, que presenciaram parte da ação que levou à morte de Adão, já haviam sido ouvidos pelo delegado Assis Brazil Menck.

Adão, considerado um “bom menino” pelos moradores da favela Mimosa, onde morava havia apenas um ano com a mãe e seis irmãos, planejava ir para Santos (SP) com um amigo no domingo. Ele não conhecia o mar.

No barraco 29 da favela Mimosa, ficou uma mala com roupas “bem arrumadas”. Pois eram as roupas de Adão, que viajaria na semana seguinte para Lavras (MG), município onde nascera. Ele queria passar o Carnaval com os avós e  já havia até dado a um tio uma parte do dinheiro para comprar a passagem.