Repórter da Folha foi preso e torturado em delegacia de Guarulhos há 40 anos
“Recebi socos, pontapés, pauladas e choques. Foram duas horas de terror.”
Foi o que disse o então repórter da Folha Milton Soares, após ter sido preso e torturado por nove detentos em uma cela da Delegacia Central de Guarulhos, na madrugada de 3 de março de 1978.
A prisão do repórter, feita de forma arbitrária pela polícia, foi uma retaliação do delegado titular Fausto Rainere, por causa de reportagens que o jornalista vinha publicando sobre casos de violência policial no município de Guarulhos (SP), onde era correspondente.
O episódio gerou grande repercussão na esfera política. Houve até protesto do deputado Paulo Kobayashi, que usou a tribuna da Assembleia Legislativa de São Paulo para se manifestar contra o comportamento da polícia.
Na Câmara Federal, o deputado Joaquim Bevilacqua clamou ao então secretário da Segurança Pública de São Paulo, Antônio Erasmo Dias, que responsabilizasse a polícia pela barbárie cometida contra o repórter.
DENÚNCIAS
Milton Soares vinha denunciando havia meses casos de arbitrariedades cometidas pela polícia de Guarulhos.
Em reportagem publicada em 13 de janeiro de 1978, o jornalista apurou o descaso com presos da Cadeia Pública de Guarulhos, que faziam greve de fome por razão de maus-tratos.
Ele denunciou que do lado do muro lateral direito do presídio, próximo ao portão por onde entravam as visitas dos detentos, “havia várias roupas e colchões rasgados e dezenas de garrafas térmicas quebradas”.
No mesmo dia, o repórter acompanhou a ida de cerca de 40 familiares de presos até o Fórum de Guarulhos para denunciar a negligência com os entes detentos. Eles reclamaram que na madrugada anterior os presos tinham sido submetidos a jatos de água gelada durante meia hora, e tiveram todos os seus pertences destruídos por policiais.
UM TÚNEL NA DELEGACIA
O conflito entre as autoridades e o jornalista, contudo, havia começado dias antes, quando Milton Soares publicou reportagem sobre o escavamento de um túnel na Delegacia Central de Guarulhos, o que provocou a ira do titular da casa, Fausto Rainere.
“Tudo indica que o túnel havia começado há algum tempo, pois ele estava com aproximadamente 40 centímetros, e, para ganhar as ruas, os presos intencionavam cavar mais dois metros. A terra removida na escavação era dispensada pela privada”, relatou Soares na reportagem.
Em outra publicação, denunciou que policiais de Guarulhos estavam utilizando veículos da corporação como táxis, e sem licença.
MENOR ESTRANGULADO
O caso mais grave levantado pelo correspondente foi o da morte do menor Arnaldo Ribeiro Rosa, 14, que foi vítima de estrangulamento na mesma delegacia onde o repórter acabou detido e violentado.
O assassinato do adolescente foi acobertado durante duas semanas pela polícia. Quando a notícia veio à tona, o juiz da 3ª Vara do Júri, Waldemar Nogueira Filho, decidiu abrir sindicância para apurar a morte do menor.
A TORTURA
As várias ameaças vindas de terceiros através da polícia não intimidavam o jornalista.
Na noite da quinta-feira (2), horas antes de ser preso, Soares, que havia chegado à Delegacia de Guarulhos por volta das 19h como cumprimento de seu trabalho como repórter, foi escorraçado aos gritos pelo delegado Fausto Rainere após uma discussão.
Para evitar um impasse maior com o titular, o repórter até que tentou deixar a delegacia, mas o delegado, irritado com as denúncias, pediu aos investigadores que trouxessem Soares de volta à delegacia.
Levado ao pavimento superior do prédio, o jornalista foi autuado em flagrante por desacato à autoridade. O auto de prisão foi presidido pelo delegado Antônio Carlos da Silva.
“Não vi nenhum desacato ao delegado, por parte do Milton. Muito pelo contrário, ele ficou o tempo todo de cabeça baixa. Do lado de fora escutei o delegado falando alto e soltando impropérios”, contou o motorista Daniel Juvêncio dos Santos, que acompanhava Soares naquele dia e que conseguiu observar a discussão pela janela da delegacia.
ARTIGO 331
O flagrante foi lavrado entre as 19h e as 22h. Durante esse tempo ninguém pôde ter acesso à sala em que o repórter estava com os delegados.
Soares foi enquadrado no artigo 331 do código penal, que prevê pena de seis meses a dois anos de detenção. Mas, por se tratar de crime afiançável, o então advogado da Folha, Menaldo Montenegro, que defendeu o jornalista na ocasião, pagou a quantia de Cr$ 10 mil arbitrada pelo delegado Silva, o responsável pela sentença.
Já eram 11h30 da noite e, para que Soares fosse liberto, era necessário ainda consultar a Divisão de Vigilância e Capturas do DEIC (Departamento de Investigações Criminais) para saber se o jornalista era procurado pela Justiça. O resultado, negativo, chegou uma hora após a solicitação, mas ainda não foi o suficiente para a soltura do repórter.
Enquanto Montenegro aguardava na delegacia a burocracia para a libertação do jornalista, que naquele momento era colocado numa cela no fundo do prédio com outros nove presos e sem o conhecimento do advogado, o delegado de plantão, Benedito Wilson Carrico, disse que a liberdade de Soares só poderia ser efetivada com o aval do delegado Antônio Carlos da Silva, que foi a autoridade que presidiu a prisão do repórter e que já não se encontrava na delegacia.
Por volta das 2h, Soares já havia sido torturado durante duas horas pelos detentos, até que uma viatura policial teve que ser chamada para levá-lo às pressas para o Pronto Socorro de Guarulhos devido à gravidade do espancamento.
Horas depois o repórter foi encaminhado para o Hospital das Clínicas, onde, perto das 6h falou brevemente com a imprensa e com o presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, Audálio Dantas.
Conforme a Folha relatou na época, “Soares apresentava vários hematomas e ferimentos por todo o corpo, principalmente no rosto e nas costas e mal articulava as palavras, pois estava com a boca bastante ferida”.
O jornalista disse aos repórteres que o flagrante contra ele fora forjado e “todas as testemunhas foram coagidas a favor do delegado Fausto Rainere”. Depois, Soares confirmou que quem o conduziu à cela foi o delegado Dercídio Inácio Ferreira, que o colocou “no pior xadrez da cadeia, o de número dez, onde ficavam os criminosos mais perigosos”.
Por fim, o jornalista declarou que, assim que foi jogado na cela, Ferreira disse aos detentos que ele os fotografara. Era a senha para o início de uma “sessão de pancadaria”, contou o repórter, que, mesmo gritando por socorro, não pôde contar com a assistência da polícia.
PAULO EGYDIO E ERASMO DIAS
O então secretário da Segurança Pública de São Paulo, o coronel Antônio Erasmo Dias, anunciou na ocasião que removeria toda a Polícia Militar de Osasco e a Civil de Guarulhos. “A polícia de Osasco já cometeu muitas arbitrariedades e a de Guarulhos, igualmente. Por isso temos de removê-las para ver se as coisas melhoram.”
O governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, também se manifestou sobre o episódio ao dizer que acompanharia o caso.
A VOLTA AO TRABALHO
Milton Soares só conseguiu retornar ao trabalho dois meses e 17 dias após a prisão.
Em junho de 1978, 2.500 jornalistas assinaram manifesto da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) contra a violência e censura à imprensa.
CONDENAÇÃO
Em fevereiro de 1979, os delegados Antônio Carlos da Silva e Dercídio Inácio Ferreira foram condenados a dez dias de detenção. O delegado Fausto Rainere, algoz maior do repórter, e o carcereiro Neal Vannuchi foram absolvidos. Já os nove presos envolvidos no espancamento tiveram suas penas ampliadas em mais seis meses de detenção.