Em 1999, Hawking escreveu por que Einstein era o personagem do século 20
No penúltimo dia de 1999, a Folha publicou um especial da revista “Time”, no qual em quatro páginas o físico britânico Stephen Hawking explicou por que Albert Einstein era escolhido o personagem do século pela revista.
Bem ao seu estilo, dissecou os feitos do cientista alemão, versou sobre seus erros e, principalmente, seu legado.
Com a palavra, Stephen Hawking (1942-2018):
“Uma breve história da relatividade”
Stephen Hawking
No final do século 19, a comunidade científica acreditava estar cada vez mais perto de uma descrição completa do Universo. Supunha-se que o espaço cósmico estivesse repleto de um fluido chamado éter. Raios de luz e sinais de rádio eram ondas circulando em éter, assim como o som é a pressão de ondas no ar. Tudo o que faltava para concluir a teoria eram medidas cuidadosas das propriedades elásticas do éter. Completada essa etapa, todas as peças se encaixariam perfeitamente.
Mas, em seguida, algumas discrepâncias sobre a predominância do éter começaram a surgir. A expectativa era de que a luz viajasse a uma velocidade constante por meio do éter. Portanto, se você seguisse na mesma direção da luz, a velocidade dela seria menor. Se tomasse a direção contrária, a velocidade deveria ser maior. No entanto, uma série de testes não conseguiu provar que diferenças de velocidade ocorrem por causa do movimento realizado no meio do éter.
O experimento mais preciso foi realizado por Albert Michelson e Edward Morley no Institute Case, em Cleveland, Ohio, em 1887. Eles compararam a velocidade de dois feixes de luz em ângulo reto em relação um ao outro. Como a Terra gira em torno de seu eixo e faz uma órbita em torno do Sol, os cientistas acreditavam que o planeta se moveria por meio do éter e que a velocidade dos dois feixes de luz divergiria. Mas Michelson e Morley não encontraram variações entre os dois feixes nem de um dia para o outro nem de um ano para o outro. Era como se a luz sempre viajasse na mesma velocidade relativa, pouco importando se o observador estivesse em movimento ou não.
O físico irlandês George Fitzgerald e o holandês Hendrik Lorentz foram os primeiros a sugerir que corpos em movimento no éter se contrairiam e que relógios ficariam mais lentos. Essa contração e lentidão seriam tais que qualquer um mediria a mesma velocidade para a luz, independentemente da forma como os raios se movessem em relação ao éter, o que FitzGerald e Lorenz consideravam uma substância real.
Mas foi um jovem chamado Albert Einstein, que trabalhava no escritório de patentes em Berna, Suíça, quem resolveu a questão de uma vez por todas. Em junho de 1905, ele redigiu um dos três documentos que o estabeleceriam como um dos maiores cientistas do mundo e, durante o processo, iniciou duas revoluções conceituais que mudariam nossa compreensão de tempo, espaço e realidade.
No documento de 1905, Einstein mostrou que, por não ser possível comprovar se alguém se movia no meio do éter ou não, a própria noção do éter se tornava dispensável. Em vez disso, partiu do princípio de que as leis da ciência deveriam ser as mesmas para todos os observadores em movimento. Um observador deveria medir a mesma velocidade para a luz, qualquer que fosse seu movimento.
Essa teoria exigia que se abandonasse a ideia de uma medida de quantidade universal chamada tempo. Ao contrário, todos deveriam ter seu próprio tempo individual. Os relógios de duas pessoas marcariam a mesma hora se cada uma se mantivesse no mesmo ponto em relação à outra, mas não se estivessem em movimento. O princípio foi confirmado por uma série de testes, incluindo um no qual um relógio de grande precisão viajou ao redor do mundo e depois foi comparado com outro que permaneceu no mesmo lugar. Se alguém quisesse viver mais, bastaria continuar viajando no sentido leste, de forma que a velocidade do avião se somaria à rotação da Terra.
O postulado de Einstein de que as leis da natureza deveriam ser aplicadas da mesma forma a todos os observadores independentemente de movimento era a base da teoria da relatividade, chamada assim porque sugere que só o movimento relativo é importante. A simplicidade dessa ideia convenceu muitos cientistas e filósofos, mas ainda havia muita oposição. Einstein tinha derrubado duas máximas absolutas da ciência do século 19: o Repouso Absoluto, representado pelo éter, e o Tempo Universal, que todos os relógios mediam. Isso significava que não havia mais padrões morais absolutos, que tudo era relativo?
Essa inquietação permaneceu durante as décadas de 20 e 30. Einstein ganhou o prêmio Nobel em 1921 como reconhecimento por um importante trabalho realizado em 1905 — mas de pequena relevância, segundo seus próprios padrões. Não houve menção à teoria da relatividade, considerada polêmica demais. Eu ainda recebo duas a três cartas por semana afirmando que Einstein estava enganado. Apesar disso, a teoria da relatividade é hoje completamente aceita pela comunidade científica, e suas previsões têm sido verificadas em incontáveis experiências e aplicações.
Uma consequência extremamente importante da teoria da relatividade é a relação entre massa e energia. O postulado de Einstein de que a velocidade da luz é a mesma para todos sugeria que nada podia se mover mais rapidamente. O que acontece é que, na medida em que energia é utilizada para acelerar uma partícula ou uma nave espacial, a massa desse objeto aumenta, ficando mais difícil sua aceleração. É impossível, portanto, fazer com que uma partícula acelere na velocidade da luz, pois seria necessária uma quantidade infinita de energia. A relação entre massa e energia é sintetizada na célebre equação de Einstein, E=mc² (energia é igual à massa multiplicada pela velocidade ao quadrado), provavelmente a única do mundo da física reconhecida nas ruas.
Uma das consequências dessa lei é a de que se o núcleo de um átomo de urânio se divide em dois com um total de massa ligeiramente menor, uma quantidade impressionante de energia é liberada. Em 1939, com a iminência da Segunda Guerra Mundial, um grupo de cientistas que havia percebido as implicações dessa descoberta persuadiu Einstein a superar seus escrúpulos pacíficos e escrever uma carta ao presidente Roosevelt, insistindo para que os Estados Unidos iniciassem um programa de pesquisa nuclear. O feito resultou no Projeto Manhattan e na bomba atômica, que destruiu Hiroshima em 1945. Algumas pessoas o responsabilizaram pela criação dos artefatos nucleares, simplesmente porque surgiu de seu cérebro a descoberta da relação entre massa e energia. Mas responsabilizá-lo pela bomba é o mesmo que culpar Newton pela existência da gravidade, que faz com que aviões caiam. Einstein não teve nenhuma participação no Projeto Manhattan e ficou chocado com a explosão da bomba.
Embora a teoria da relatividade se encaixe bem nas leis que regem a eletricidade e o magnetismo, ela não era compatível com a lei da gravidade de Newton. Essa lei afirmava que, se houvesse mudança na distribuição de matéria em uma área no espaço, a alteração do campo gravitacional seria sentida imediatamente em todas as outras partes do Universo. Isso significaria não apenas ser possível enviar sinais mais rápidos que a luz (algo impossível, segundo a teoria da relatividade), como também requereria o Tempo Universal ou Absoluto, abolidos pela relatividade em favor do tempo pessoal ou relativo.
Einstein tinha consciência desse obstáculo em 1907, quando ainda trabalhava no escritório de patentes em Berna. Mas não pensou seriamente no problema até chegar à German University em Praga, em 1911. Ele percebeu que havia uma relação estreita entre aceleração e campo gravitacional. Uma pessoa dentro de uma caixa fechada é incapaz de saber se está imóvel no campo gravitacional da Terra ou se está sendo impulsionada por um foguete em espaço livre. Einstein imaginou seres humanos dentro de elevadores em vez de naves espaciais, uma vez que Jornada nas Estrelas ainda não existia naquela época. Mas uma pessoa não pode acelerar ou cair livremente por uma longa distância em um elevador antes que o desastre ocorra.
Se a Terra fosse plana, seria possível dizer que a maçã caiu na cabeça de Newton por causa da gravidade, ou que a cabeça de Newton atingiu a maçã porque ele e a superfície da Terra estavam acelerando em direção ascendente. A relação entre aceleração e gravidade, no entanto, parecia não funcionar em uma Terra redonda; as pessoas do outro lado do mundo teriam que acelerar na direção oposta, mas mantendo uma distância constante em relação às pessoas do lado de cá.
Em sua viagem de volta a Zurique, em 1912, Einstein teve um estalo. Percebeu que a relação entre gravidade e aceleração poderia funcionar se houvesse uma certa flexibilidade na geometria da realidade. O que aconteceria se a entidade espaço-tempo –inventada por Einstein para adicionar às três já conhecidas dimensões do espaço uma quarta dimensão, o tempo– fosse curva e não plana, como sempre se pensou? Sua ideia era a de que massa e energia poderiam alterar a relação espaço-tempo de alguma forma. Objetos como maçãs ou planetas tentariam se mover em linha reta por meio do espaço-tempo, mas suas trajetórias seriam vergadas por um campo gravitacional, pois o espaço-tempo é curvo.
Com a ajuda de seu amigo Marcel Grossman, Einstein estudou a teoria dos espaços e superfícies curvos (desenvolvida por Bernhard Riemann como uma peça de matemática abstrata) sem imaginar sua relevância futura para o mundo real. Em 1913, Einstein e Grossman escreveram um documento no qual afirmavam que as chamadas forças gravitacionais eram, na verdade, uma manifestação de que o espaço-tempo é curvo. No entanto, devido a um erro de Einstein (que era humano e, portanto, falível), os dois cientistas não foram capazes de encontrar as equações que relacionavam a curvatura do espaço-tempo à massa e energia contidas.
Einstein continuou a trabalhar no problema em Berlim, indiferente às questões internas da Alemanha ou à guerra. Em novembro de 1915 ele encontrou as equações corretas. Einstein havia discutido suas ideias com o matemático David Hilbert durante uma visita à Universidade de Göttingen, no verão de 1915. Hilbert tinha encontrado as mesmas equações alguns dias antes. Mas, como ele próprio admitiu, o crédito pela nova teoria pertencia a Einstein. Foi ideia do físico, não do matemático, relacionar a gravidade à alteração do espaço-tempo. E também foi um tributo à civilizada Alemanha, numa época em que discussões e trocas de ideias na área científica não eram perturbadas nem mesmo pela guerra. Que diferença em relação a duas décadas mais tarde!
A nova teoria do espaço-tempo curvo foi denominada relatividade geral, para distingui-la da teoria original sem gravidade, conhecida como relatividade especial. Ela foi lançada com estardalhaço em 1919, quando uma expedição britânica à África ocidental observou uma ligeira mudança na posição das estrelas próximas ao Sol durante um eclipse. Como Einstein tinha previsto, a luz das estrelas se curvava quando passava pelo Sol. Aqui estava a evidência direta de que o espaço e o tempo eram alterados. Era a maior mudança em nossa percepção da realidade desde que Euclides escreveu Elementos, em torno de 300 a.C.
A teoria da relatividade de Einstein transformou o papel do espaço e do tempo, que passaram de cenários passivos onde eventos ocorrem a participantes ativos na dinâmica do cosmos. A teoria levou a um problema ainda não decifrado pela física no final do século 20. O universo é feito de matéria e matéria afeta a relação espaço-tempo, o que faz com que corpos caiam juntos. Einstein descobriu que suas equações não tinham uma solução que descrevesse um universo imutável no tempo. Em vez de desistir da ideia de um universo estático e perpétuo –na qual tanto ele quanto a maioria das pessoas acreditavam naquela época–, o cientista modificou as equações adicionando um termo denominado constante cosmológica (que alterava o espaço-tempo para o lado oposto, de forma que os corpos se movessem em separado). O efeito de repulsão da constante cosmológica balancearia o efeito atrativo da matéria e permitiria a existência de um universo imutável de forma permanente.
O gesto de Einstein tornou-se uma das maiores oportunidades perdidas da física teórica. Se tivesse continuado com suas equações originais, o cientista teria previsto que o Universo tanto pode expandir quanto contrair. Até aquela época, a possibilidade de um universo dependente do tempo não era levada a sério. Contudo, na década de 20, novas observações foram feitas com a ajuda de um telescópio de 2,5 metros no Monte Wilson. Elas demonstraram que, quanto mais distantes as galáxias estão de nós, mais rapidamente elas se distanciam. Em outras palavras: o universo está em expansão e a distância entre duas galáxias cresce constantemente com o tempo. Mais tarde, Einstein admitiu que a constante cosmológica havia sido o maior erro de sua vida.
A relatividade geral modificou completamente a discussão sobre a origem e o destino do universo. Um universo estático podia existir desde sempre ou ter sido criado em sua forma presente em algum momento do passado. Por outro lado, se as galáxias se distanciam hoje em dia, elas podem ter sido mais próximas no passado. Há cerca de 15 bilhões de anos elas poderiam estar uma no topo da outra e sua densidade teria sido infinita. Segundo a teoria geral, esse Big Bang foi o início do Universo e do próprio tempo. Talvez, por essa razão, Einstein mereça ser o personagem não apenas dos últimos cem anos, mas de um período mais longo.
De acordo com a teoria da relatividade geral, o tempo para dentro de buracos negros, regiões de espaço-tempo tão alteradas que a luz não consegue escapar delas. Mas o início e o fim do tempo são lugares onde as equações da relatividade geral se desmantelam. A teoria, portanto, não pode prever o que vai emergir do Big Bang.
Alguns veem esse fato como uma prova da liberdade de Deus de iniciar o universo como bem entender. Outros (e me incluo nessa categoria), acreditam que o início do universo é regido pelas mesmas leis que funcionavam em outros tempos. Fizemos algum progresso em relação a essa questão, mas ainda não temos uma compreensão completa da origem do universo.
A conexão entre relatividade geral e o Big Bang surgiu a partir da ideia de que este não era compatível com a teoria quântica, outra grande revolução conceitual do início do século 20. O primeiro passo nessa direção ocorreu em 1900, quando Max Planck, que trabalhava em Berlim, descobriu que a radiação de um corpo aquecido até ficar vermelho e brilhar podia ser explicada se a luz viesse apenas em pacotes de um determinado tamanho, batizados de quanta. Era como se a radiação obedecesse a regras iguais às da venda de açúcar: não é possível escolher comprar uma porção qualquer no supermercado, apenas quantidades previamente determinadas, que vêm em pacotes. Em um de seus documentos mais inovadores de 1905, quando ainda estava no escritório de patentes, Einstein demonstrou que a hipótese de Planck poderia explicar o chamado efeito fotoelétrico, que é a maneira como certos metais produzem elétrons quando raios de luz incidem sobre eles. Esse é o princípio dos modernos detectores de luz e das câmeras de TV, trabalho que valeu ao cientista o prêmio Nobel de Física em 1921.
Einstein continuou trabalhando na ideia do quantum na década de 20, mas ficou profundamente perturbado com o estudo dos cientistas Werner Heisenber, de Copenhague, Paul Dirac, de Cambridge, e Erwin Schrödinger, de Zurique, que desenvolveram um novo cenário da realidade chamado mecânica quântica. Pequenas partículas não tinham mais posição e velocidade definidas. Pelo contrário, quanto mais precisa a localização de uma partícula, mais difícil era determinar sua velocidade com exatidão. E vice-versa.
Einstein ficou horrorizado com esse elemento imprevisível nas leis básicas e nunca aceitou por completo a mecânica quântica. Seus sentimentos foram expressos na célebre frase: “Deus não joga dados”. Muitos cientistas, no entanto, acataram a teoria quântica porque ela demonstrava concordância com observações feitas anteriormente e parecia explicar uma grande variedade de fenômenos até então não desvendados. Essas leis formam a base dos avanços modernos da química, da biologia molecular e da eletrônica, assim como da tecnologia que transformou o mundo nos últimos 50 anos.
Quando os nazistas tomaram o poder na Alemanha em 1933, Einstein abandonou o país e renunciou à cidadania alemã. Ele passou os últimos 22 anos de sua vida no Instituto de Estudos Avançados em Princeton, Nova Jersey.
Os nazistas lançaram uma campanha contra a “Ciência judaica” e contra cientistas alemães judeus (seu êxodo explica, em parte, o fato de a Alemanha não ter sido capaz de construir a bomba atômica). Einstein e a teoria da relatividade foram os principais alvos dessa campanha. Quando tomou conhecimento do livro “One Hundred Authors Against Einstein” (“Cem autores contra Einstein”), indagou: “Por que cem? Se eu estivesse errado, apenas um seria suficiente”.
Depois da Segunda Guerra, Einstein pediu aos aliados que criassem um governo mundial para controlar a bomba atômica. Em 1952, recebeu o convite para assumir a presidência do novo Estado de Israel, mas recusou. “A política é apenas por um momento”, escreveu, “enquanto… uma equação é para a eternidade.” As equações da relatividade geral são seu melhor epitáfio e herança. Eles irão durar enquanto o universo existir.
O mundo mudou mais nos últimos cem anos do que em qualquer outro século da história em consequência das tecnologias que se originaram diretamente do progresso da ciência básica. Nenhum outro cientista representa melhor esses avanços do que Albert Einstein: o personagem do século da TIME.
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Sobre sua condição física, declarou “eu sempre tentei superar as limitações da minha condição e levar a vida mais completa possível. Eu viajei o mundo, da Antártida à gravidade zero. Talvez um dia, eu vá ao espaço”.