OUTROS 13 DE MAIO: Raquel Rolnik explica a formação de territórios negros em São Paulo
A trajetória histórica da comunidade negra pelas regiões de São Paulo foi descrita pela arquiteta e urbanista Raquel Rolnik em artigo, publicado no suplemento Folhetim, da Folha, em 28 de setembro de 1986.
Ela informou que, em 1854, São Paulo tinha 30 mil habitantes, e um terço da população era escrava. Relatou como e onde eles viviam e apontou a intensa redefinição territorial sofrida ao longo dos anos.
Segundo Raquel, a história desta comunidade é marcada pela estigmatização dos territórios negros da cidade.
“Se no mundo escravocrata devir negro era sinônimo de sub-humanidade e barbárie, na República do trabalho livre, livre virou marca de marginalidade. O estigma se formulou a partir de um discurso etnocêntrico e uma pratica repressiva: do olhar vigilante do senhor na senzala ao pânico dos sanitaristas em visita ao cortiço; do registro esquadrinhador do planejador urbano à violência das viaturas policiais nas vilas e favelas”, escreveu.
Leia abaixo o artigo completo, que o Banco de Dados resgata no Blog Acervo Folha em uma série referente aos 130 anos da abolição que serão completados domingo (13).
28.set.1986
Territórios negros em São Paulo
* Raquel Rolnik
A história da comunidade negra de São Paulo, desde sua libertação, foi sempre marcada pela estigmatização de seus territórios na cidade
História
Senzalas e quilombos marcaram a história da comunidade negra no Brasil. Esta principia com a escravidão de africanos em terras brasileiras, parte de um empreendimento europeu de conquista mercantil de um novo território: Novo Mundo. O Brasil fazia então parte de um circuito que ligava os continentes europeu, africano e americano.
Produzindo matérias primas tropicais para exportar e consumindo escravos, a colônia portuguesa intensificava a circulação de mercadorias, acelerando a acumulação de capitais na Europa, centro de controle destes fluxos comerciais. Na lógica do projeto mercantilista de colonização, a utilização do trabalho escravo respondia a dupla necessidade: de alimentar o tráfico de africanos, um dos setores mais rentáveis do comércio colonial, e de subjugar uma mão de obra que, se não fosse cativa, poderia simplesmente ocupar um pedaço de terra, já que esta era abundante e inexplorada no Novo Mundo.
A relação senhor-escravo foi assim instituída, tendo a princípio europeus como senhores e africanos como escravos.
Casa grande e senzala foi uma forma de espacialização desta relação. Projetada pelos fazendeiros envolvidos no empreendimento agrário-exportador, a senzala é o espaço de confinamento do escravo, prisioneiro de uma condição sub-humana. Sua arquitetura expressa a vontade senhorial –fileira de quartos sem janela nem mobília se fechando em pátios de onde se poderia vigiar e comandar os escravos.
Para os negros e mulatos trazidos ao Brasil pela máquina comercial europeia, a senzala representava o território da submissão, fruto da brutalidade dos senhores. Porém não era só o olhar vigilante do senhor e violência do trabalho escravo que estruturava o cotidiano dos habitantes da senzala –foi também no interior desta arquitetura que floresceu e se desenvolveu um devir negro, afirmação da vontade de solidariedade e auto preservação que fundamentava a existência de uma comunidade africana em terras brasileiras.
O tráfico –desterritorializando milhões de africanos– implantava no Novo Mundo a segregação entre brancos e negros. O confinamento na nova terra era a experiência capaz de transformar um grupo –cujo único laço era alguma ancestralidade africana– em comunidade; África era o continente da memória coletiva, que se transmitia através de linguagens conhecidas desde os lugares de origem ou adquiridas no contato com os europeus e índios. Assim, se foi tecendo um território negro no Brasil, continente de um devir coletivo que marca a constituição de uma comunidade afro-brasileira.
Um dos suportes mais sólidos deste devir foi, desde a senzala, o próprio corpo, espaço de existência, continente e limite do escravo. Arrancando do lugar de origem o despossuído de qualquer bem, era o escravo portador –nem mesmo proprietário– de seu corpo. Era através dele que, na senzala, o escravo afirmava e celebrava sua ligação comunitária; era através dele também que a memória coletiva pôde se transmitir, ritualizada e festejada. Foi assim que o pátio da senzala, símbolo da segregação e controle, transformou-se em terreiro, lugar de celebração das formas de ligação da comunidade.
No entanto, o limite da autonomia deste território estava em sua própria definição –o corpo do escravo era propriedade do senhor. Só a fuga e libertação era capaz de romper este limite, devolvendo ao homem escravo o poder sobre sua própria vida. Daí nasce o quilombo, zona libertada da escravidão.
Escravos nas cidades
A história dos quilombos brasileiros é pouco conhecida. As poucas histórias de quilombo de que a historiografia se ocupou se referem aos territórios negros de um mundo rural, em plena escravidão.
Mas o mundo da monocultura escravistas não era somente rural –embora o centro da produção fossem as fazendas–, uma rede de cidades se desenvolveu. Eram cidades de mercadores, envolvidos em grandes tráfegos internacionais –como as cidades/porto da costa Atlântica, ou cidades interiores, pontas de lança para a conquista do território, cruzamento de rotas comercias, centros redistribuidores
Assim como nas fazendas, os trabalhos mecânicos nas cidades também eram realizados por escravos e assim foram se constituindo territórios negros urbanos, espaço de moradia, trabalho, encontro e rito de comunidade. Enquanto espaços de submissão ou autonomia, senzalas e quilombos urbanos balizavam a relação da comunidade negra com a cidade onde estavam inseridos.
Senzalas e quilombos –que papel e que destino tiveram na abolição da escravidão?
São Paulo
Uma visão da cidade de São Paulo no momento da abolição nos fornece um “flash” desta história.
Às vésperas da abolição, o eixo dinâmico do setor agrário exportador da economia brasileira estava na cafeicultura do Sudeste. Sobretudo após a extinção do tráfico, foi para esta região que se deslocou a maior parte dos escravos do país, que tendiam a se concentrar nas áreas mais produtivas.
A partir do último quarto do século 19, São Paulo era a cidade-centro da expansão cafeeira. A crise da escravidão se agilizava no momento em que a cafeicultura paulista, numa forma voraz de terra e homem avançava em direção ao Oeste em ritmo de ferrovia. Antes do “boom” cafeeiro, São Paulo era um centro comercial modesto.
Posto avançado no planalto para a exploração de terra e apresamento dos índios no início da colonização, São Paulo se desenvolveu como entrocamento de rotas comerciais em um circuito econômico complementar ao setor agrário exportador. Em 1854, com 30 mil habitantes, 1/3 da população paulista era escrava. A maior parte destes escravos era encarregada do serviço doméstico e habitava as casas senhoriais. Em São Paulo de 1850, senhores de escravos moravam em chácaras ao redor da cidade ou em lotes urbanos contíguos, os sobrados das ruas do centro.
As chácaras paulistanas reeditavam o projeto da senzala rural –a lavanderia, animais, escravos localizavam-se fora do edifício principal, junto a um pátio.
Nos sobrados, a senzala é os fundos da casa, área do trabalho doméstico. Nesta região –varanda, cozinha e quintal, ficavam as mulheres e escravos envolvidos na produção doméstica. A varanda era também a sala de viver, local onde se faziam as refeições e a sesta. A casa era basicamente um lugar de permanência e clausura das mulheres; os homens passavam a maior parte do tempo nas ruas, ficando em casa apenas nos horários de refeição e sono.
A rua era também território dos escravos. A contiguidade dos sobrados nas zonas centrais das cidades contribuía para que fosse intensa a circulação de escravos domésticos: buscando águas nos chafarizes, indo ou voltando com a roupa ou latas de excrementos para os rios, carregando cestas nas áreas de mercado, transportando objetos de um ponto a outro da cidade.
Na ruas da Sé e da Santa Efigênia, os escravos domésticos se misturavam aos de ganho: no final do período escravocrata era cada vez mais frequente os senhores alugarem os serviços de seus escravos por hora, dia ou mês. Eram escravos de ofício (carpinteiros, pedreiro, ferreiro, etc) que “empreitavam” seus serviços ou, mais frequentemente ainda, vendedores e carregadores que pagavam aos senhores um parte da féria diária.
Ser escravo de ganho era para o escravo um dos caminhos para a compra da alforria na medida em que, paga a féria devido ao senhor, algum excedente poderia sobrar em sua mão. Aos libertados pela compra da própria alforria somara-se os filhos de escrava com senhor –aos quais, às vezes, este decidia alforriar– e os libertos por vontade senhorial expressa em testamento. Assim, o número de libertos na cidade crescia aceleradamente nas últimas décadas da escravidão: em 1872, dos 11.679 negros e mulatos de São Paulo –um terço da população da cidade– apenas 3.829 eram escravos. Os escravos e libertos que viviam em São Paulo no final da escravidão definiam um território negro nas ruas do centro.
Um dos pontos destes territórios eras as irmandades, organizações religiosas negras. Nossa Senhora do Rosário na praça Antônio Prado ou Nossa Senhora dos Remédios, na Liberdade, era onde, em dia de festa cristã, se batucava e dançava. Além de ponto de encontro e práticas rituais, o espaço de irmandades era muitas vezes local de habitação de libertos. Em cômodos contíguos de porta e janela, ocultando assentamentos de orixá sob imagens de santo, moravam negros e mulatos libertos em um dos quilombos da cidade.
Além de quilombos, as irmandades negras também organizavam fundos de emancipação que libertavam escravos, através da compra de alforrias.
Outro ponto de encontro da comunidade negra eram os mercados. Quitanda e cangalha –principais ocupações de escravos de ganho ou libertos– envolviam a passagem pelo mercado. As quitandeiras, que enfileiravam seus baús de folha, caldeirões e fogareiros pela cidade, se abasteciam no mercado. Ali, nos ervários africanos, os pais de santo compravam também e, trabalhando com folhas e sementes, cuidavam da saúde física e mental da comunidade. Por ali passavam os vendedores e os escravos domésticos circulavam –libertos e escravos conspiravam nos mercados.
Habitações coletivas
Viver em porões ou cômodos contíguos em habitações coletivas era a forma de moradia acessível aos libertos. Única opção de moradia barata no centro da cidade, a habitação coletiva tem uma arquitetura que implica num cotidiano em que, na maior parte do tempo, as atividades relacionada ao morar acontecem em um espaço semi-público, intermediário entre o interior da casa e o anonimato da rua –os pátios e quintais coletivos.
A arquitetura destas habitações coletivas se assemelha ao “compound” (ou “collectivé”), habitação clânica africana presente em várias zonas urbanizadas da África Ocidental. Essa é a forma, por exemplo, das casas das “tias” negras, matriarcas chefes de clã, ou de terreiros, onde pais e filhos moram coletivamente, constituindo famílias “de santo”, compostas por indivíduos sem laços de parentesco e transformando os quintais em locais de festa e rito de comunidade. Assim era também a configuração das roças, núcleos negros semi-rurais localizados nas matas em torno das colinas das cidades.
Essas habitações coletivas –cômodos e porões no centro ou pequenas aldeias nas periferias– são quilombos paulistanos no final da escravidão. Territórios negros libertos tiveram um papel importante na desagregação do sistema escravocrata, na medida em que se constituíam em alternativas concretas para a forma de socialização submetida da senzala. Representaram o movimento de libertação dos próprios escravos, que, constituindo, e fazendo proliferar zonas libertas, intensificavam a luta pela abolição.
Mão de obra imigrante
Se para os negros a libertação era uma questão de autonomia, para os senhores a questão era de mão de obra: esta se colocava principalmente para os cafeicultores paulistas. A maior fonte possível para a compra de escravos –o tráfico– estava então sendo desmantelada pela mesma máquina que o havia montado séculos antes –o capital inglês. Agora que lucro não estava mais em fazer mercadorias navegarem pelos mares, era preciso criar mercados locais nos continentes onde estes mares chegavam. Assim, a pressão inglesa pelo fim do tráfico aumentava, até sua extinção final, em meados do século. Quando perceberam a inevitabilidade do processo abolicionista, os fazendeiros/empresários do café paulista logo começaram a pensar na substituição da mão de obra.
A “solução” da questão implicou no deslocamento de milhares de europeus, sobretudo italianos, para as terras paulistas: os colonos imigrantes. Os primeiros foram subsidiados pelo governo de São Paulo e encaminhados até as fazendas, porém cedo a imigração espontânea superou subsidiada e São Paulo italianou-se. A substituição do escravo negro pelo imigrante livre foi acompanhada de um discurso que difundia a solução como alternativa progressista, na medida em que europeus “civilizados e laboriosos” trariam sua cultura para ajudar a desenvolver a nação. A alternativa implicou também a formulação de uma teoria racial –a raça negra estava condenada pela bestialidade da escravidão –e a vinda de imigrantes europeus traria elementos étnicos superiores que, através da miscigenação, poderiam branquear o país, como “uma transfusão de puro e oxigenado sangue de uma raça livre”.
A operação de substituição da mão de obra escrava significou, portanto, a redefinição do lugar do negro na sociedade –de escravo a marginal. Neste movimento de redefinição, o lugar do trabalhador passou a ser ocupado pelo imigrante destituído; assim como o do proprietário de terras e máquinas.
Nesta operação não somente o lugar do trabalhador foi deslocado, mas também também a própria noção de trabalho como escravidão teve que se redefinir. A proposta dos proprietários foi o estabelecimento de uma linha de cor nesta nova configuração social –trabalho de negro é trabalho escravo, trabalho de branco é trabalho livre. Em outras palavras, no discurso da classe dominante, negro livre não servia para trabalhar. A posição de marginalidade do negro em relação a esta nova configuração social seria, então, justificada através da ideia de inferioridade cultural da raça negra, característica responsável pela “inadaptação” dos libertos a uma relação mais moderna de trabalho.
Na cidade de São Paulo, esta formulação implicou numa intensa redefinição territorial. Antes de mais nada, a cidade veria sua população aumentar rapidamente em poucas décadas, fruto principalmente da entrada de imigrantes.
OUTROS 13 DE MAIO: Ricupero destacou relação entre escravidão e terra
Em 1886, dois anos antes da promulgação da Lei Áurea, que abolia oficialmente a escravidão no país, os “estrangeiros” já começavam a chegar. Nesta data São Paulo é uma cidade de quase 50 mil habitantes e 25% são estrangeiros. A população negra da cidade, já então constituída basicamente por libertos (eram apenas 493 escravos), começa a sofrer um decréscimo, tanto relativo quanto absoluto. Se em 1872 havia em torno de 12 mil negros na cidade, em 1890 eles são menos de 11 mil.
O imigrante europeu substitui tanto os escravos quantos os libertos na posição do trabalhador. As ocupações mecânicas, enobrecidas pelo trabalho livre, passaram a ser exercidas pelos estrangeiros: em 1893, os imigrantes constituíam 80% do pessoal ocupado nas atividades manufatureiras e artesanais da cidade.
Na cidade assim redefinida, o quilombo é marginal –sua presença africana não cabe no projeto de cidade europeia. Isto se manifesta na constituição de um poder urbano que, a partir de 1886, com a promulgação do Código de Posturas Municipal, manifesta o desejo de proibir práticas presentes nos territórios negros da cidade: as quitandeiras devem sair da rua porque “atrapalham o trânsito”, os mercados devem ser transferidos para a periferia, porque “afrontam a cultura e conspurcam a cidade”, os pais de santo não podem mais trabalhar porque são “embusteiros que fingem inspiração por algum ente sobrenatural”.
O projeto de cidade europeia significará também redefinição e deslocamento no espaço da classe dominante. Esta abandona a contiguidade dos sobrados do centro para ocupar loteamentos exclusivos em palacetes neoclássicos: primeiro nos Campos Elíseos, posteriormente na Vila Buarque e Higienópolis e, finalmente, na avenida Paulista.
O novo território da classe dominante, projeto de arquitetos europeus, é uma casa circundada por cinturão de proteção e isolamento –os altos muros/portões/gramados que a separam da rua. Internamente são três regiões: o território familiar público (sala de visitas/vestíbulo/escritório e sala de jantar, espaços “arrumados para visita” que ostentam o tesouro da família); a zona íntima (dormitório e banheiros hierarquizados por sexo e faixas etárias) e zona de serviços e serviçais. Esta última situa-se de certa forma isolada da casa, contígua à cozinha, despensa e quintais. Esta configuração não era muito diferente de uma entrada de serviços, marcadamente separada da entrada social.
Trabalhar como empregado doméstico, habitando edículas dos palacetes, foi desde a abolição uma das poucas opções de atividade para negros e mulatos. O serviço doméstico, exercido principalmente por mulheres, pouco se redefiniu com o fim da escravidão. Na verdade, a senzala como espaço de confinamento e submissão à casa senhorial continuou existindo nas edículas da casa burguesa.
O deslocamento do território da classe dominante acabou por definir novos territórios negros: por um lado, a região do Centro Velho, recém-abandonada, passou a ser mais densamente ocupada sob a forma de casa de cômodos: “encortiçou-se”. Por outro lado, aos pés das novas regiões burguesas, surgiram núcleos de habitação coletiva, onde negros e mulatos ligados ao serviço doméstico na região dos palacetes (lavadeiras, cozinheiras, carregadores) moravam com suas famílias. Este foi um dos movimentos de re-territorialização da comunidade negra que configurou dois dos quilombos de São Paulo pós-abolição: Barra Funda e Bexiga.
A formação da Barra Funda como território negro tem a ver com Campos Elíseos e Higienópolis, mas também esta tem sua formação ligadas à localização dos armazéns da Estrada de Ferro neste bairro. Ser carregador ocasional da Estrada de Ferro era uma das únicas ocupações possíveis para os homens negros na cidade do trabalho livre. Os carregadores do Paulo Chaves –assim era chamado o armazém– eram conhecidos na comunidade e fora dela como os “valentões” e “capoeiras” da Barra Funda. Juntos se deslocavam de São Paulo para Santos para carregar café no porto quando havia trabalho na capital; juntos ficavam na porta dos bailes negros da cidade caso “houvesse qualquer coisa”, ou entravam nas rodas de samba com uma coreografia própria.
No início do século, era a Barra Funda o território mais caracterizadamente negro de São Paulo. Suas habitações coletivas abrigavam várias tias africanas com seus clãs, que praticavam o jongo, macumba ou samba de roda como extensão da própria vida familiar. Estes locais eram habitações coletivas onde moravam famílias extensas e indivíduos sem laços de parentesco e, pouco a pouco, os batuques familiares foram se transformando em cordões de carnaval. Camisa Verde, Cordão do Geraldino ou Campos Elíseos tiveram esta origem e imortalizaram o quilombo da Barra Funda como berço do samba paulista.
A história do Bexiga como território negro começou no século 19, quando lá existiu um quilombo semi-rural, o Saracura. Como a abertura da avenida Paulista, esta região se transformou em zona contígua à área burguesa (como a Barra Funda o era em relação aos Campos Elíseos), local de habitação dos “ajudantes gerais”. Mas o Bexiga se tornou realmente território negro com as grandes reformas de embelezamento da cidade que, na segunda década do século, expulsaram habitações coletivas do Centro Velho.
Estas reformas significaram a reconquista, pela classe dominante, emergente, de um centro encortiçado. O plano da burguesia de cafeicultores, grandes comerciantes, banqueiros e artistas convidados, consistia basicamente em remover tudo o que era considerado marginal do centro da cidade e redesenhá-lo segundo o projeto de um centro de moderna e próspera capital europeia. Assim, ruas foram alargadas, mercados demolidos, praças remodeladas. Tais reformas implicaram, por exemplo, na desapropriação da Igreja e Irmandade Nossa Senhora do Rosário, um dos quilombos importantes da comunidade no século 19. Tratava-se, para a classe no poder, de destruir um centro híbrido (que misturava bancos, cortiços, zonas de prostituição, comércio elegante e mercados em ruas estreitas) e, em seu lugar, edificar um território exclusivo das classes dominantes. Tanto o Bexiga como a liberdade cresceram com a operação limpeza do centro. Nestes bairros, principalmente na década de 20, se configuravam territórios negros importantes com suas escolas de samba, terreiros, times de futebol e salões de baile.
Na Barra Funda, Bexiga e Liberdade, além de certos pontos da Sé, nas primeiras décadas do século, se organizaram também sociedades negras, com atividades culturais e recreativas que envolviam a publicação de jornais, a produção litero-musical e teatral, passeios piquenique e bailes de fim de semana em salões alugados.
Ainda neste período o espaço de moradia da comunidade era principalmente os cômodos alugados em habitações coletivas. Estas habitações –e os bairros onde se estruturaram território negros no início do século (20)– jamais foram exclusivamente negras. Desde os tempos da escravidão estes espaços misturavam os pobres da cidade. O Bexiga, por exemplo, tem sido negro e italiano; a Barra Funda, negra e portuguesa e assim por diante. No entanto, isto não quer dizer que historicamente não tenha existido em São Paulo uma comunidade negra fortemente estruturada e circunscrita a um território particular. A mistura de brancos e negros nas zonas populares da cidade significou, sim, a incorporação de alguns brancos e a mulatização da comunidade.
Qualquer um destes quilombos paulistanos da Primeira República tinha fama de ser lugar de “desclassificados”.
Sua marginalidade era identificada com a não proletarização de sua população, o que é imediatamente associado à ideia de desorganização, uma vez que a ocasionalidade da distribuição dos tempos de trabalho e lazer contrasta com a disciplina e regularidade do emprego assalariado.
A imagem de marginalidade é também identificada com o próprio da habitação coletiva: a intensidade de uma vida em grupo não familiar e a densidade dos contatos no dia a dia do cortiço contrasta com a organização burguesa (familiar, isolada, internamente divida em cômodos com funções e habitantes segregados). Finalmente, a marginalidade é associada a um conjuntos de gestos, um jeito de corpo. Se, para a comunidade negra, a linguagem do corpo é elemento de liga e sustentação do código coletivo que institui a comunidade, para a classe dominante branca e cristã a frequência com que se dança, umbiga, requebra e abraça publicamente desafia padrões morais. A presença de terreiros e práticas religiosas africanas completa o estigma: macumba é marginal porque é “crendice”, é “religião primitiva” que afronta a religião oficial.
Desmarginalização
A posição de marginalidade da comunidade negra só começaria a se alterar levemente a partir da década de 30, quando negros e mulatos começam a entrar no mercado formal de trabalho. A “integração” do grupo significaria uma redefinição de seu território. Para os membros da própria comunidade que já estavam “integrados”, a desmarginalização se coloca claramente em termos territoriais — era preciso sair logo dos cômodos e porões para organizar um novo território negro familiar. Esta foi uma das palavras de ordem da Frente Negra Brasileira, agremiação política fundada em 1931, e que pregava a necessidade de instrução e organização da vida familiar nuclear na comunidade para que os negros pudessem atingir a igualdade com o branco. Uma das ações concretas dos membros da Frente foi comprar terrenos em loteamentos recém-abertos na periferias da cidade, fundando núcleos negros formados por casas próprias. Casa Verde, Vila Formosa, Parque Peruche, Cruz das Almas e Bosque da Saúde são exemplos desta nova forma de territorialização –em bairros inicialmente sem nenhuma infraestrutura e distantes do centro, famílias negras começaram a edificar casas próprias em lotes comprados.
O movimento de periferização da comunidade negra começou a ocorrer em um momento em que parte da comunidade se integrava –econômica, cultural e territorialmente– à vida de uma cidade onde a habitação popular se periferizava. Este movimento significou também dispersão –nenhum dos novos núcleos chegou a configurar um território negro tão caracterizado como o Bexiga e a Barra Funda. Se no passado eram poucos e densos, os quilombos agora se multiplicaram em um desenho mais rarefeito.
Devir negro
Esta breve história dos territórios paulistanos nos fornece alguns elementos para refletir acerca do papel e do destino da comunidade negra da cidade escravocrata e nos revela como os espaços que cabiam aos negros foram investidos por um devir negro, que estruturou e sustentou a comunidade mesmo nas situações mais extremas de confinamento, humilhação, segregação e miséria.
A história desta comunidade é marcada pela estigmatização dos territórios negros da cidade: se no mundo escravocrata devir negro era sinônimo de sub-humanidade e barbárie, na República do trabalho livre, livre virou marca de marginalidade. O estigma se formulou a partir de um discurso etnocêntrico e uma pratica repressiva: do olhar vigilante do senhor na senzala ao pânico dos sanitaristas em visita ao cortiço; do registro esquadrinhador do planejador urbano à violência das viaturas policiais nas vilas e favelas.
Para a cidade, território marginal é território perigoso porque é dali, daquele espaço definido por quem não mora ali como desorganizado, promíscuo e imoral, que pode nascer uma força disruptora sem limite. Assim se institui uma espécie de apartheid velado que, se por um lado confina a comunidade à posição estigmatizada de marginal, por outro nem reconhece a existência de seu território, espaço/quilombo singular.
* Raquel Rolnik é arquiteta, urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Foi relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) para o Direito à Moradia Adequada (2008-2014). Atuou como diretora de Planejamento da Prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina, entre 1989 e 1992, coordenadora de Urbanismo do Instituto Pólis, entre 1997 e 2002, e secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, entre 2003 e 2007, no governo Lula.
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