OUTROS 13 DE MAIO: Milton Santos cobrou reação ao apartheid à brasileira
Ao analisar a situação dos negros no país, o geógrafo Milton Santos defendeu em artigo, publicado em 7 de maio de 2000, que era preciso reagir urgentemente a uma forma de apartheid à brasileira.
Segundo Milton, não era possível esconder a existência de diferenças sociais, econômicas estruturais e seculares. Afirmou que o negro no Brasil era, com frequência, objeto de um olhar enviesado.
“A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta”, escreveu.
Esse é mais um texto que o Banco de Dados está republicando no Blog Acervo Folha na série Outros 13 de Maio que vai até este domingo (13), quando serão completados 130 anos da abolição. Leia o artigo completo abaixo:
7.mai.2000
Ser negro no Brasil hoje
Ética enviesada da sociedade branca desvia enfrentamento do problema negro
Há uma frequente indagação sobre como é ser negro em outros lugares, forma de perguntar, também, se isso é diferente de ser negro no Brasil.
As peripécias da vida levaram-nos a viver em quatro continentes, Europa, Américas, África e Ásia, seja como quase transeunte, isto é, conferencista, seja como orador, na qualidade de professor e pesquisador.
Desse modo, tivemos a experiência de ser negro em diversos países e de constatar algumas das manifestações dos choques culturais correspondentes. Cada uma dessas vivências foi diferente de qualquer outra, e todas elas diversas da própria experiência brasileira.
As realidades não são as mesmas. Aqui, o fato de que o trabalho do negro tenha sido, desde os inícios da história econômica, essencial à manutenção do bem-estar das classes dominantes deu-lhe um papel central na gestação e perpetuação de uma ética conservadora e desigualitária.
Os interesses cristalizados produziram convicções escravocratas arraigadas e mantêm estereótipos que ultrapassam os limites do simbólico e têm incidência sobre os demais aspectos das relações sociais. Por isso, talvez ironicamente, a ascensão, por menor que seja, dos negros na escala social sempre deu lugar a expressões veladas ou ostensivas de ressentimentos (paradoxalmente contra as vítimas).
Ao mesmo tempo, a opinião pública foi, por cinco séculos, treinada para desdenhar e, mesmo, não tolerar manifestações de inconformidade, vistas como um injustificável complexo de inferioridade, já que o Brasil, segundo a doutrina oficial, jamais acolhera nenhuma forma de discriminação ou preconceito.
500 anos de culpa
Agora, chega o ano 2000 e a necessidade de celebrar conjuntamente a construção unitária da nação. Então é ao menos preciso renovar o discurso nacional racialista. Moral da história: 500 anos de culpa, 1 ano de desculpa.
Mas as desculpas vêm apenas de um ator histórico do jogo do poder, a Igreja Católica! O próprio presidente da República [Fernando Henrique Cardoso] considera-se quitado porque nomeou um bravo general negro para a sua Casa Militar e uma notável mulher negra para a sua Casa Cultural. Ele se esqueceu de que falta nomear todos os negros para a grande Casa Brasileira.
Por enquanto, para o ministro da Educação, basta que continuem a frequentar as piores escolas e, para o ministro da Justiça, é suficiente manter reservas negras como se criam reservas indígenas.
A questão não é tratada eticamente. Faltam muitas coisas para ultrapassar o palavrório retórico e os gestos cerimoniais e alcançar uma ação política consequente. Ou os negros deverão esperar mais outro século para obter o direito a uma participação plena na vida nacional?
Que outras reflexões podem ser feitas, quando se aproxima o aniversário da Abolição da Escravatura, uma dessas datas nas quais os negros brasileiros são autorizados a fazer, de forma pública, mas quase solitária, sua catarse anual?
Hipocrisia permanente
No caso do Brasil, a marca predominante é a ambivalência com que a sociedade branca dominante reage, quando o tema é a existência, no país, de um problema negro. Essa equivocação é, também, duplicidade e pode ser resumida no pensamento de autores como Florestan Fernandes e Octavio Ianni, para quem, entre nós, feio não é ter preconceito de cor, mas manifestá-lo.
Desse modo, toda discussão ou enfrentamento do problema torna-se uma situação escorregadia, sobretudo quando o problema social e moral é substituído por referências ao dicionário.
Veja-se o tempo politicamente jogado fora nas discussões semânticas sobre o que é preconceito, discriminação, racismo e quejandos, com os inevitáveis apelos à comparação com os norte-americanos e europeus.
Às vezes, até parece que o essencial é fugir à questão verdadeira: ser negro no Brasil o que é?
Talvez seja esse um dos traços marcantes dessa problemática: a hipocrisia permanente, resultado de uma ordem racial cuja definição é, desde a base, viciada.
Ser negro no Brasil é frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo. Essa ambiguidade marca a convivência cotidiana, influi sobre o debate acadêmico e o discurso individualmente repetido é, também, utilizado por governos, partidos e instituições.
Tais refrões cansativos tornam-se irritantes, sobretudo para os que nele se encontram como parte ativa, não apenas como testemunha. Há, sempre, o risco de cair na armadilha da emoção desbragada e não tratar do assunto de maneira adequada e sistêmica.
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Marcas visíveis
Que fazer? Cremos que a discussão desse problema poderia partir de três dados de base: a corporeidade, a individualidade e a cidadania.
A corporeidade implica dados objetivos, ainda que sua interpretação possa ser subjetiva; a individualidade inclui dados subjetivos, ainda que possa ser discutida objetivamente.
Com a verdadeira cidadania, cada qual é o igual de todos os outros e a força do indivíduo, seja ele quem for, iguala-se à força do Estado ou de outra qualquer forma de poder: a cidadania define-se teoricamente por franquias políticas, de que se pode efetivamente dispor, acima e além da corporeidade e da individualidade, mas, na prática brasileira, ela se exerce em função da posição relativa de cada um na esfera social.
Costuma-se dizer que uma diferença entre os Estados Unidos e o Brasil é que lá existe uma linha de cor e aqui não. Em si mesma, essa distinção é pouco mais do que alegórica, pois não podemos aqui inventar essa famosa linha de cor. Mas a verdade é que, no caso brasileiro, o corpo da pessoa também se impõe como uma marca visível e é frequente privilegiar a aparência como condição primeira de objetivação e de julgamento, criando uma linha demarcatória, que identifica e separa, a despeito das pretensões de individualidade e de cidadania do outro.
Então, a própria subjetividade e a dos demais esbarram no dado ostensivo da corporeidade cuja avaliação, no entanto, é preconceituosa.
A individualidade é uma conquista demorada e sofrida, formada de heranças e aquisições culturais, de atitudes aprendidas e inventadas e de formas de agir e de reagir, uma construção que, ao mesmo tempo, é social, emocional e intelectual, mas constitui um patrimônio privado, cujo valor intrínseco não muda a avaliação extrínseca, nem a valoração objetiva da pessoa, diante de outro olhar.
No Brasil, onde a cidadania é, geralmente, mutilada, o caso dos negros é emblemático.
Os interesses cristalizados, que produziram convicções escravocratas arraigadas, mantêm os estereótipos, que não ficam no limite do simbólico, incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais. Na esfera pública, o corpo acaba por ter um peso maior do que o espírito na formação da socialidade e da sociabilidade.
Peço desculpas pela deriva autobiográfica. Mas quantas vezes tive, sobretudo neste ano de comemorações, de vigorosamente recusar a participação em atos públicos e programas de mídia ao sentir que o objetivo do produtor de eventos era a utilização do meu corpo como negro –imagem fácil– e não as minhas aquisições intelectuais, após uma vida longa e produtiva.
Sem dúvida, o homem é o seu corpo, a sua consciência, a sua socialidade, o que inclui sua cidadania. Mas a conquista, por cada um, da consciência não suprime a realidade social de seu corpo nem lhe amplia a efetividade da cidadania.
Talvez seja essa uma das razões pelas quais, no Brasil, o debate sobre os negros é prisioneiro de uma ética enviesada. E esta seria mais uma manifestação da ambiguidade a que já nos referimos, cuja primeira consequência é esvaziar o debate de sua gravidade e de seu conteúdo nacional.
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Olhar enviesado
Enfrentar a questão seria, então, em primeiro lugar, criar a possibilidade de reequacioná-la diante da opinião, e aqui entra o papel da escola e, também, certamente, muito mais, o papel frequentemente negativo da mídia, conduzida a tudo transformar em “faits-divers”, em lugar de aprofundar as análises.
A coisa fica pior com a preferência atual pelos chamados temas de comportamento, o que limita, ainda mais, o enfrentamento do tema no seu âmago. E há, também, a displicência deliberada dos governos e partidos, no geral desinteressados do problema, tratado muito mais em termos eleitorais que propriamente em termos políticos. Desse modo, o assunto é empurrado para um amanhã que nunca chega.
Ser negro no Brasil é, pois, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta. Logo, tanto é incômodo haver permanecido na base da pirâmide social quanto haver “subido na vida”.
Pode-se dizer, como fazem os que se deliciam com jogos de palavras, que aqui não há racismo (à moda sul-africana ou americana) ou preconceito ou discriminação, mas não se pode esconder que há diferenças sociais e econômicas estruturais e seculares, para as quais não se buscam remédios.
A naturalidade com que os responsáveis encaram tais situações é indecente, mas raramente é adjetivada dessa maneira. Trata-se, na realidade, de uma forma do apartheid à brasileira, contra a qual é urgente reagir se realmente desejamos integrar a sociedade brasileira de modo que, num futuro próximo, ser negro no Brasil seja, também, ser plenamente brasileiro no Brasil.
*Milton Santos (1926-2001) foi geógrafo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, consultor da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da OEA (Organização dos Estados Americanos) e da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura). Escreveu mais de 40 livros, publicados no Brasil, França, Reino Unido, Portugal, Japão e Espanha.
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