1988: Morre Aracy de Almeida, jurada de TV e maior intérprete de Noel Rosa

“Mas que putaria, eu não posso estar aqui”, afirmou Aracy de Almeida à sua afilhada Maria Adelaide Bragança minutos antes de uma embolia pulmonar  tirá-la de cena aos 73 anos, na tarde de 20 de junho de 1988, no Hospital dos Servidores do Estado (centro do Rio), onde estava internada havia 13 dias por causa de um acidente vascular cerebral.

Personagem das mais memoráveis da TV brasileira, onde encarnou a jurada “ranzinza” em quadros de calouros, o último deles no Programa Silvio Santos –onde estava desde 1975–, Aracy de Almeida foi, sobretudo, uma das mais proeminentes cantoras da era de ouro do rádio. No samba, gênero que adotou para a carreira, foi considerada a mais fiel intérprete de Noel Rosa, ao lado da cantora Marília Batista.

Aracy, que nunca se casou nem teve filhos, foi sepultada no cemitério Parque Jardim da Saudade (Rio) depois de ser velada por cerca de 20 mil pessoas no Teatro João Caetano, onde em 1981 e 1982 fez suas últimas apresentações como cantora, ao lado de João Nogueira e do grupo Coisas Nossas, respectivamente.

“O mais triste é saber que toda esta gente veio aqui para se despedir da jurada de televisão. Quase ninguém mais lembra que ela foi uma grande cantora”, disse o compositor e pesquisador da música brasileira Hermínio Bello de Carvalho, que esteve na cerimônia para dar o último adeus à cantora e amiga.

Aracy Teles de Almeida, ou “Araca”, como também era chamada pelos amigos, nasceu em 19 de agosto de 1914, na rua Guilhermina, no bairro suburbano do Encantado (zona norte do Rio), onde morou até o fim da vida. Filha de uma dona de casa e de Baltasar Teles Almeida, um pastor protestante e funcionário da Central do Brasil, Aracy, que dizia nunca ter brincado de boneca nem de ciranda durante a infância, era a única mulher entre os cinco filhos da família.

O SAMBA EM PESSOA

Durante a adolescência, a pulsação pelas batucadas do Rio levou Aracy a ser uma assídua frequentadora de escolas de samba na zona norte da cidade, onde aprendeu as gírias, os trejeitos e a ginga que acabaram se tornando marcas na vida da artista. Em entrevistas revelou que a escolha pela música veio por necessidade. “Era uma menina pilantra, safada, que não queria estudar e não sabia fazer nada. Daí, só mesmo cantando.”

Aracy começou muito jovem. O primeiro contato direto com a música foi quando integrou corais evangélicos no bairro do Méier (zona norte do Rio). Depois, contrariando os preceitos religiosos da família, passou a cantar em candomblés no Engenho de Dentro, também na zona norte.

NOEL ROSA

A entrada na música popular se deu no início dos anos 30, sob influência de Carmen Miranda, cantora que Aracy admirava e tentava imitar no início da trajetória. Sua dicção peculiar, caracterizada por sua voz nasalada, foi elogiada num estudo de Mário de Andrade numa conferência em 1943.

O primeiro empurrão para o profissionalismo, porém, foi dado pelo compositor Custódio Mesquita, que, em 1933, a levou para um teste no programa Pinocchio, da Rádio Educadora (depois Tamoio), onde cantou a marchinha “Bom Dia, Meu Amor” (Joubert de Carvalho e Olegário Mariano), sucesso na voz de Carmen Miranda. Foi lá que conheceu o eterno “poeta da Vila”, Noel Rosa, que no mesmo dia compôs para a estreante “Seu Riso de Criança”, após ter ouvido e apreciado o raro timbre vocal da iniciante.

Aracy e Noel se tornaram grandes amigos, construindo uma parceria que duraria até a morte do compositor em 4 de maio de 1937, de tuberculose. Dele, gravou “Feitio de Oração”, “Palpite Infeliz” e “O X do Problema”, entre outras. O último trabalho foi a melancólica “Último Desejo”, cuja interpretação Noel não teve tempo de ouvir.

Em 1934, Aracy  foi contratada pela Columbia, onde gravou o seu primeiro disco, com a marcha carnavalesca “Em Plena Folia”, de Julieta de Oliveira. Depois, assinou com a Rádio Cruzeiro do Sul. Daí não demorou muito até a sambista ser convidada pela RCA Victor, onde gravaria “Cansei de Pedir”, “Triste Cuíca” e “Amor em Parceria”, todas de Noel. Logo passou pelas rádios Philips, Mayrink Veiga, Ipanema e Tupi. Ao longo da carreira foram mais de 400 canções gravadas.

OUTROS COMPOSITORES

A trajetória de Aracy na MPB não se resumiu apenas à grandeza de ter sido uma das maiores intérpretes de Noel. A “Dama da Central”, como também ficou conhecida, emprestou sua voz a vários outros nomes do cancioneiro brasileiro.

Dentre as composições que a sambista gravou estão “Helena” (Raul Marques e Ernâni Silva), “Vaca Amarela” (Lamartine Babo e Carlos Neto), “Saudosa Favela” (Heitor do Prazeres), “Fale Mal… Mas Fale de Mim” (Ataulfo Alves e Marino Pinto), “Brigamos Outra Vez” (Wilson Batista e Marino Pinto), “Saia do Caminho” (Custódio Mesquita e Evaldo Rui) e “Camisa Amarela”, de Ary Barroso, que certa vez criticou a voz da cantora ao dizer que ela desafinava e cantava pelo nariz.

A partir de 1948, com Noel Rosa quase esquecido, Aracy decidiu revisitar a obra do poeta com apresentações antológicas na famosa boate Vogue, no Rio, que posteriormente viraram discos e ajudaram a ecoar a poesia do autor às novas gerações. Em 1950, a cantora reduziu o ritmo de shows e passou a morar em São Paulo, onde viveu até 1962.

Em 1968 gravou “A Voz do Morto”, do tropicalista Caetano Veloso, que entrou para um compacto-simples produzido para a Bienal do Samba daquele ano. “Essa música é uma coisa meio tétrica, um negócio pra tocar em castelo estranho”, disse a cantora no programa de entrevistas Vox Populi, da TV Cultura.

Um ano depois, participou do show “Que Matavilha”, com Toquinho, Jorge Benjor, Paulinho da Viola, Trio Mocotó e Trio do Luiz Melo. Apresentado no Teatro Cacilda Becker, o espetáculo teve a direção do amigo Fernando Faro.

Tida por Paulinho da Viola como a maior cantora de samba, no final dos anos 70 Aracy esbarrou no rock, quando se apresentou ao lado do grupo Joelho de Porco, em espetáculo apresentado no Teatro Célia Helena, onde interpretaram Noel Rosa, Antônio Maria e Chico Buarque, entre outros nomes.

A JURADA

Começou a trabalhar como jurada nos programas do Chacrinha e do Bolinha, até ser contratada em 1975 para o “Show de Calouros” de Silvio Santos, atração que a tornou uma das figuras mais populares da TV pela irreverência e pelo deboche com que julgava os aspirantes a artistas.

Aracy era direta e não amenizava nas críticas nem mesmo calouros mirins, que recebiam palavras duras sobre suas performances.

Quando perguntada sobre ter abdicado da profissão de cantora pela de jurada de TV, respondia: “Melhor ser jurada do que ficar em casa fazendo tricô”.