1948: Monteiro Lobato morre aos 66 anos, após se dizer curioso em conhecer fim da vida; leia entrevista

Vítima de um derrame cerebral, o escritor José Bento Monteiro Lobato, um dos mais populares do Brasil, morreu aos 66 anos, na madrugada de 4 de julho de 1948, em São Paulo.

Cerca de um ano antes de isso ocorrer, ele havia declarado, em entrevista exclusiva para a Folha da Noite (um dos jornais que deram origem à Folha), que já não tinha mais pretensões e que estava curioso em saber o que acontece depois do fim da vida.

“O meu cavalo está cansado, querendo cova —e o cavaleiro tem muita curiosidade em verificar pessoalmente se a morte é vírgula, ponto e vírgula ou ponto-final”, disse.

Quando a entrevista foi publicada, no dia 22 de abril de 1947, o escritor estava com 65 anos e morava em Buenos Aires, mas se preparava para voltar a viver no Brasil.

Lobato é autor de obras como “Reinações de Narizinho” e “Caçadas de Pedrinho”, que eternizaram as aventuras do “Sítio do Picapau Amarelo” e marcaram a infância de muitas crianças.

Também fez muito sucesso com jovens e adultos, publicando livros como “Urupês”, no qual aparece o famoso personagem Jeca Tatu, e “Cidades Mortas”, que retrata o declínio de municípios no Vale do Paraíba, em São Paulo.

Ele residiu por um ano, entre 1946 e 1947,  na Argentina, onde suas obras infantis tiveram grandes tiragens.  O motivo de viver naquele país, segundo afirmou, era “visitar os trinta filhos sob forma de edições de livros” que lá tinham sido lançados.

No entanto, Lobato sentia nostalgia da língua portuguesa e por isso queria retornar ao Brasil:

“Descobri que pátria é pura e simplesmente a língua nativa, na qual, desde o ‘papá-mamãe’, vivemos organicamente como o bicho dentro da goiaba. Sinto-me bicho fora da goiaba, e quero a goiaba”, disse.

A entrevista dada à Folha da Noite foi realizada durante uma visita ao escritor em Buenos Aires.

Lobato, que reclamou da imprensa por lhe atribuir falsas declarações, aceitou responder por escrito a algumas questões, publicadas no fim da reportagem.

“O método americano de entrevista de jornal é que é batata. O repórter escreve as perguntas, o entrevistado as devolve datilografadas e não há jeito da confusão se estabelecer”, afirmou.

Leia abaixo a íntegra do texto publicado pela Folha da Noite,  com a grafia original:

22 de abril de 1947

A morte é virgula, ponto e virgula ou ponto final?

Monteiro Lobato, que vai regressar ao nosso país, quer verificar essa “inquietação”

Em entrevista exclusiva para Folha da Noite narra o grande escritor as verdadeiras razões de sua viagem à Argentina e os motivos que o trazem de volta ao Brasil, aonde deverá chegar dentro de poucos dias

Correspondência especial para a Folha da Noite

BUENOS AIRES, abril, por via aerea – Monteiro Lobato voltará ao Brasil no fim deste mês. Desta vez vai mesmo. E vai para ficar.

O seu retorno, tantas vezes anunciado e tantas vezes desmentido, foi-nos comunicado com essas simples palavras:

— Estou de malas prontas para voltar a São Paulo. Vou ficar em hotel, já que não há casa…

Foi assim que Monteiro Lobato nos revelou uma noticia que todos os verdadeiros amigos e discipulos do grande escritor desejavam ouvir há tanto tempo. E concluiu, resmungando:

— Não vá publicar nada do que lhe disse. Isso aqui é uma informação para uso pessoal e não uma entrevista. Veja esses recortes são de entrevistas a mim atribuidas. E olhe quanta besteira contem esse pequeno trecho, quanta besteira em tão poucas linhas!

Uma entrevista nada fácil

A verdade, entretanto, é que nossa entrevista saiu sem que nós ou Monteiro Lobato estivessemos com esta intenção. Ao visitá-lo, não nos passava pela cabeça entrevistá-lo. Alem do mais, quasi que não havia nenhuma originalidade em mais uma entrevista com Lobato.

Raro é o jornalista brasileiro que vem a Buenos Aires e não corre logo à casa de Lobato. Que belo assunto para jornal. O reporter nem tem que fazer força. Lobato—e como ele e sua familia sabem receber bem os brasileiros que passam por aqui!—vai dizendo, com aquele seu geitão de caipira paulista, frases que podem constituir cada qual uma manchete. Mas, quando a entrevista sae lá vem o estrilo.

A culpa, porem, nem sempre é do reporter. Não é nada facil registrar mentalmente o aluvião de coisas interessantes que o escritor vai dizendo. Alem do mais, aqueles dois olhos negros, escondidos debaixo de um par de imponentes sobrancelhas, não param de se agitar. O pobre do reporter nem sabe o que deve registrar primeiro—as palavras ou a malicia do olhar, as frases ou aquela gargalhada nervosa e indecifravel.

E enquanto essa pequena tragedia profissional ocorre, Lobato—sem se dar conta de que o reporter esfrega intimamanete as mãos de contente—vai distilando a sua amargura, essa amargura que o torna um dos espiritos mais construtivos do Brasil.

É por isso que a gente passa por burro”

Foi assim que nasceu esta entrevista. Lobato agitou no ar um dos últimos recortes que recebera de São Paulo, onde alguem colocara em sua boca que “o Brasil melhorara porque não estava mais dominado por politicos ossudos, bojudos e soturnos”.

— Eu nunca diria esse amontoados de asneiras. Ora, ora, politicos ossudos e bojudos Você é capaz de me explicar o que quer dizer isso? Naturalmente me referi a qualquer outra coisa e o reporter fez a confusão.

Sim, Lobato tinha razão. Mas—que diabo!—ele estava falando com um jornalista. E o instinto profissional se manifestaria … Assim, de mansinho, partiu a insinuação:

— O metodo americano de entrevista de jornal, é que é batata. O reporter escreve as perguntas, o entrevistado as devolve datilografadas e não há geito da confusão se estabelecer.

— É isso mesmo, respondeu Lobato. O que nos falta é metodo, é sistema. É por falta dessas coisas que a gente passa tantas vezes por desonesto e burro.

Enquanto Lobato falava, rabiscavamos—como quem não quer nada—um questionario. E o escritor mais lido e difundido na America Latina, caiu na armadilha como um patinho.

Por detras da cortina de ferro

Aliás, para aproveitar a deixa, esta não é a primeira demonstração de inocencia de Lobato. Apesar de seu ar feroz e casmurrão, ele é um dos homens mais puros do Brasil. E daí tantas de suas dores de cabeças.

A gente está habituada a vêlo revolver e espicaçar a vaidade nacional com uma critica impiedosa e incorruptivel, como raros são os intelectuais do Brasil com coragem de fazê-lo. Entretanto, por detrás da cortina de ferro de cepticismo e descrença de Lobato, encontra-se um homem que ama o Brasil e que para torna-lo melhor vai dos livros ao fundo da terra, cria a Jeca Tatu, organiza editoras e funda companhias de petroleo e ferro, para ver se a coisa toma melhor jeito.

Aqui mesmo, em Buenos Aires o dedo de Lobato se acha por trás de tudo que signifique melhorar o nome e a posição do Brasil diante do povo argentino.

Há uma exposição de livros brasileiros. Oficialmente, é a nossa embaixada a sua organizadora. E não há dúvida que o jovem e eficiente secretario, Murilo Pessoa, dedicou-se a ela com o melhor dos seus esforços. Mas, é ele mesmo quem nos confessa:

—Monteiro Lobato foi o primeiro e o que mais nos animou e auxiliou na realização desse empreendimento.

E, se um dia a correspondencia de Lobato for publicada—aliás, por que é que ninguem não se lembrou ainda de editá-la?—a gente descobrirá a preocupação de Lobato, por um Brasil melhor através dos inumeros exemplos, sugestões, planos, criticas, conselhos, que ele envia incansavelmente daqui para os seus amigos e companheiros do Brasil.

O meu cavalo está cansado”

Mas, isso já é assunto para outra conversa. Aqui, o que nos interessa é a entrevista, a primeira que Lobato afirma ser plenamente autorizada para os jornais do Brasil.

E, lá vai ela, tal e qual Lobato a redigiu, respondendo ao nosso questionario:

P [Pergunta] — Em verdade, por que saiu do Brasil?

R [Resposta] — Para visitar na Argentina os trinta filhos que lá tenho sob forma de edições de livros.

P — E agora, qual a verdadeira razão de sua volta ao Brasil?

R — Nostalgia da lingua. Descobri que Patria é pura e simplesmente a lingua nativa, na qual, desde o “papá-mamãe” vivemos organicamente como o bicho dentro da goiaba. Sinto-me bicho fora da goiaba, e quero a goiaba.

P — Comparativamente, quais as diferenças fundamentais de vida no Brasil e na Argentina?

R — As mesmas que há entre um automovel que já partiu e um automovel cujos passageiros ainda discutem com o chofer sobre o caminho a tomar.

P — Olhando de longe, seus pontos de vista sobre o futuro do Brasil sofreram qualquer alteração?

R — Nenhuma. Perto ou longe o nevoeiro é o mesmo.

P — Acha que a Argentina de hoje oferece alguns exemplos que o Brasil poderia aceitar e aplicar para o seu proprio desenvolvimento?

R — Acho que a abundancia de agua nas torneiras argentinas é um exemplo dignissimo de ser imitado pelas torneiras cariocas.

P — Voltando ao Brasil pretende divulgar o que viu na Argentina?

R — Divulgar a existencia de bifes para o faminto e agua para o sedento me parece obra de uma crueldade.

P — Finalmente, retornando ao Brasil, que pretende fazer ?

R — Que pretendo fazer? Rebolar-me dentro da goiaba, contemplar o umbigo e preparar-me num convento para a viagem final. O meu cavalo está cansado, querendo cova —e o cavaleiro tem muita curiosidade em verificar pessoalmente se a morte é virgula, ponto e virgula ou ponto final.