1968: Atores de ‘Roda Viva’ são agredidos, e teatro é depredado

Assim que terminou a apresentação da peça ‘Roda Viva’, por volta das 23h30 de 18 de julho de 1968, os atores foram surpreendidos por um ataque na sala O Galpão, no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo.

Integrantes do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) começaram a bater nos atores e na equipe do espetáculo.  Cerca de 90 homens agiram dentro do teatro, e 20 ficaram fora.

A peça foi escrita por Chico Buarque e recebeu a direção de Zé Celso Martinez Corrêa. Estreou no Rio de Janeiro em janeiro de 1968, com muito sucesso, e em maio veio para São Paulo.

Os invasores estavam armados com cassetetes e socos-ingleses, relatou a Folha, em uma edição vespertina, publicada no dia seguinte.

“Depredaram as poltronas, quebraram os ‘spots’, instrumentos musicais, e subiram aos camarins onde as atrizes estavam mudando de roupa. Espancaram-nas, tirando-lhes a roupa, e praticaram atos brutais de sevicia, conforme afirmavam atores, testemunhas oculares da violência”, informou a reportagem.

Reprodução da primeira página da Folha de 19 de abril, da edição vespertina

A pancadaria durou cerca de três minutos. O contrarregra José Luiz Araújo sofreu uma fratura na bacia. A atriz Marília Pêra, protagonista da peça, foi forçada a sair pelada de lá.

“Os invasores quebraram tudo o que puderam, bateram em todos os artistas, principalmente no contrarregra José Luiz Araújo e na atriz Marília Pêra, que, depois de várias vezes mordida, foi obrigada a andar nua pela rua”, reportou a Folha da Tarde.

Manchete da Folha da Tarde, de 19 de julho de 1968

Marília falou sobre esse episódio no livro “Vissi D’Arte” (1999), biografia escrita pelo dramaturgo Flavio de Souza e pela própria atriz.

“Entraram quebrando os espelhos, arrancaram minha roupa, deram socos. Saí correndo, me desviando de socos. No corredor havia mais rapazes, e enquanto fugia eu sentia cassetetes nas costas”, declarou.

A atriz Margot Baird foi outra vítima, conforme publicou a Folha da Tarde. “Depois de despi-la totalmente, dois terroristas torceram os seus seios”, descreveu a reportagem.

O ator Rodrigo Santiago declarou que estava no seu camarim só de paletó, quando houve a invasão. “Corri. Passei por um corredor polonês, de 20 homens com japonas azuis. Levei porrada e torci o tornozelo. Nada grave.”

Durante a tarde daquele dia, um telefonema anônimo foi recebido avisando que um grupo estava planejando um quebra-quebra na peça “Feira Paulista de Opinião”, também encenada no Teatro Ruth Escobar. A ameaça ao teatro se confirmou, mas o alvo foi o outro espetáculo.

No momento do ataque, policiais estavam teatro para tentar aumentar a segurança. Porém, como relatam os jornais, eles nada fizeram para impedir a depredação e as agressões.

O enredo de “Roda Viva” não tinha cunho diretamente político. Contava a história de um artista que ficou famoso, virou um ídolo, se adaptou as demandas da indústria cultural  e depois cometeu suicídio.

A peça tinha palavrões e cenas mais fortes. Por exemplo, um fígado cru era dilacerado no palco, como se um ídolo fosse devorado, e o sangue respingava no público.

Nesta época, a ditadura militar estava em seu quarto ano no poder no Brasil, e os militares já haviam começado a endurecer o discurso.

O teatrólogo Plínio Marcos, um dos dirigentes da classe teatral, afirmou que o ataque aos atores de “Roda Viva” serviria para tumultuar ainda mais o país.

“Todo o patriota teme e nós tememos pelos destinos de nossa pátria. Sentimos que há realmente um grupo organizado, forçando a barra, para levar a nação a um regime de terror e violência”, declarou.

No dia seguinte, os atores se apresentaram mesmo feridos e com figurinos rasgados.

Depois do ataque, o censor Mário F. Russomano chegou a questionar se Chico Buarque seria um débil mental por ter escrito a peça.

“Roda Viva” ainda sofreria outro ataque, em Porto Alegre, em outubro de 1968. Segundo Zé Celso, soldados foram ao hotel, agrediram os atores e os colocaram em um ônibus com destino a São Paulo.

O ataque

Em 17 julho de 1993, a Folha publicou a reportagem “Comando de Caça aos Comunistas diz como atacou ‘Roda Viva’ em 68”, assinada pelo jornalista Luís Antônio Giron.

O texto revelou que o advogado João Marcos Flaquer foi quem planejou e comandou a ação.

“O objetivo era realizar uma ação de propaganda para chamar a atenção de autoridades sobre a iminência da luta armada, que visava a instauração de uma ditadura marxista no Brasil”, disse  Flaquer.

Dos 110 homens que atuaram naquela noite, 70 eram civis e 40 militares. Fora do teatro, ficaram 20 para facilitar a fuga. Estavam armados com cassetetes, revólveres e metralhadoras.

Eles, que já haviam estudado o espaço do teatro, esperaram o público sair, colocaram uma luva na mão esquerda para identificação e iniciaram o quebra-quebra.

Segundo o grupo, a meta havia sido atingida, pois não houve feridos graves e ação ganhou muita repercussão.

O Ato Institucional número 5 foi decretado em 13 de dezembro de 1968, pelo presidente Arthur da Costa e Silva, e deu poderes extraordinários para o governo, como o de fechar o Congresso, as Assembleias e as Câmaras e o de suspender a garantia de habeas corpus em crimes políticos.

“[O ataque à ‘Roda Viva] antecipou o AI-5 e cortou a via subversiva que o teatro teria seguido”, disse Zé Celso, em maio de 1993.

Em novembro de 2017, a coluna da Mônica Bergamo informou que Zé Celso recebeu a autorização de Chico Buarque para remontar a peça. O diretor passou a buscar financiamento para a produção.