GUGA HÁ 20 ANOS: Brasileiro conquista Roland Garros; país ainda não formou sucessor no tênis
Após surpreender ao vencer o austríaco Thomas Muster (5º do mundo), o ucraniano Andrei Medvedev (20º) e o russo Yevgeny Kafelnikov (3º), três medalhões do tênis mundial, Gustavo Kuerten chegou àquele dia 8 de junho de 1997 a um passo de se sagrar campeão do Aberto da França.
Mas pela frente ele teria o espanhol Sergi Bruguera, 19º no ranking da ATP (Associação de Tenistas Profissionais), bicampeão do torneio francês (1993-1994) e então favorito na final.
Para Guga, o título lhe daria projeção no cenário mundial. Para o Brasil, seria o primeiro Grand Slam* no masculino. Antes, a tenista Maria Esther Bueno** havia conquistado sete troféus de simples nos anos 1950 e 1960 (três em Wimbledon e quatro no Aberto dos EUA).
Fora toda a sua preparação, o brasileiro também contava com o apoio de três “corneteiras profissionais”: as irmãs Cleto.
Tereza, Ana Cristina e Lucia, irmãs do ex-tenista Paulo Cleto, agitavam as arquibancadas nos jogos de Kuerten. Nos momentos decisivos, o técnico Larri Passos pedia que elas incentivassem seu pupilo.
Na partida contra o belga Filip Dewulf, válida pela semifinal, por exemplo, o juiz chamou a atenção das irmãs diversas vezes, devido ao barulho que faziam.
“Elas são amigas e dão apoio nos momentos difíceis”, disse Guga, ao admitir a importância da torcida do trio durante os jogos.
De fato, o desempenho do tenista em Roland Garros originou fãs, como o brasileiro Walter Carpes Junior, que esteve no duelo contra o belga Filip Bewulf pela semifinal: “Fiz questão de vir e usar a camisa do Avaí [clube de futebol de Santa Catarina] porque sei que ele torce para o time”.
Outro torcedor, o industrial Michel Zolk, que estava em Paris a negócios, também aproveitou para acompanhar a última vitória brasileira. “Meu filho de dez anos joga tênis e quero que ele seja como Guga”, contou à reportagem da Folha.
O entusiasmo não tomava conta apenas dos torcedores. Em texto para a Folha, publicado no dia 6 de junho de 1997, Nelson Nastás, então presidente da CBT (Confederação Brasileira de Tênis), vislumbrava os benefícios que a atuação do atleta no Aberto da França traria ao tênis brasileiro.
“O tênis nunca recebeu nada [do governo]. Nosso patrocínio é zero, mesmo já tendo deixado ideias e projetos no Ministério do Esporte e da Comunicação. Ninguém investe em coisa furada. Para algo funcionar no Brasil, é preciso um ídolo, uma imagem boa”, disse o dirigente, esperando investimento público na modalidade.
O JOGO
Guga começou a partida decisiva com o pé direito, ou melhor, com o braço direito, ao marcar o ponto inicial. Mas quem ficou com o primeiro game foi o rival.
Este primeiro set foi marcado pelo equilíbrio. E o tenista catarinense conseguiu quebrar o serviço de Sergi Bruguera e venceu por 6/3.
O atleta espanhol voltou mais disposto no set seguinte. Apesar de ter perdido o primeiro game, venceu o segundo impondo o seu estilo, fazendo o brasileiro ir à rede em uma disputa emocionante, aplaudida de pé pelo público presente na quadra central.
Mas aquele segundo set ainda não estava definido. Os atletas chegaram a empatar um dos games em 40 iguais e trocaram a vantagem durante dez minutos até Kuerten fechá-lo.
Bruguera parecia nervoso, enquanto Guga transpirava tranquilidade. E o sangue-frio levou o brasileiro à vitória no set mais disputado: 6/4.
A desvantagem pareceu desanimar o tenista espanhol, que não esboçou reação e viu o brasileiro entrar para a história do tênis mundial ao fechar o terceiro e último set com fáceis 6/2.
“A regularidade de Kuerten é surpreendente. Ele jogou excepcionalmente bem, melhor do que nos jogos anteriores e manteve um bom nível durante toda a partida”, disse Bruguera, em coletiva após a partida, sem acreditar muito no que havia acontecido.
Sentimento parecido com o do então mais novo campeão de Roland Garros: “Ainda não acredito no que está acontecendo comigo, acho que Deus realmente é brasileiro”, vibrou Guga, que deu alegria aos cerca de 500 brasileiros presentes à quadra. Felizes com a conquista, um grupo de torcedores do Rio chegou a entoar o funk “Ah, eu tô maluco”.
Para vencer Bruguera, o catarinense prometeu durante seus treinamentos que iria à rede –ponto forte do espanhol. E ele cumpriu: fez 16 dos seus 111 pontos em jogadas de ataque na rede, contra 6 de 84 de seu adversário.
“Consolidou ainda mais a minha façanha [o desempenho na final]. É a partida perfeita daquele ano. Do início ao fim um jogo irretocável”, contou Kuerten, em especial que a Folha preparou para celebrar os 20 anos da conquista.
O ex-tenista norte-americano John McEnroe, um dos mais importantes da história, afirmou à época que o brasileiro “veio para ficar” e previu futuro promissor para o atleta que ele comparou a uma mistura de Pelé com Alexi Lalas, zagueiro da seleção dos EUA na Copa de 1994.
“Ele tem o visual do Lalas [cabelo cumprido e jeito de roqueiro], mas para os brasileiros deve virar um ídolo como Pelé. Daqui a uma década, ainda vão comentar o feito em Paris.”
De certo modo, McEnroe estava certo. A conquista, duas décadas depois, não seria lembrada apenas pela importância da efeméride, mas também pela falta de novos “Gugas” na modalidade.
Guga ainda venceu o Aberto da França em mais duas oportunidades (2000 e 2001) e se tornou o número um do ranking da ATP, mas encerrou a carreira de simples em 2008 sem um substituto. E isso também foi previsto.
“a.G. – d.G.”
Em texto publicado na Folha, em 11 de junho de 2001, escrito pelo atual secretário de Redação do jornal –na época editor-assistente de Esporte–, Roberto Dias, o “fenômeno Kuerten” caminhava “para se encerrar nele mesmo”, assim como foi com Maria Esther Bueno.
Dentre os vários motivos elencados para corroborar essa ideia estavam a falta de investimento em infraestrutura e “mão de obra”, com “projetos de renovação” que caminhavam “a passos de tartaruga”.
Jovens interessados no esporte existiam. Um projeto do Banco do Brasil, que na época do tricampeonato (2001) de Roland Garros patrocinava Guga e mantinha cinco escolinhas, atendia a 1.200 crianças, segundo a instituição.
Para efeito de comparação, explicava o texto, a vizinha Argentina, cujo programa escolar recebeu o título de “melhor do mundo” da Federação Internacional de Tênis, colocava 800 mil crianças, anualmente, em contato com a modalidade.
Outra referência em investimento no esporte da raquete, a Espanha tinha em 2001 oito atletas no top 50 da ATP, enquanto o Brasil ostentava apenas Guga, então número um. Anos depois, os espanhóis veriam o surgimento do multicampeão e diversas vezes 1º do mundo Rafael Nadal.
Hoje, a Espanha tem sete atletas entre os 50 melhores do mundo –Nadal o melhor ranqueado, em quarto–, a Argentina tem dois –Juan Martin del Potro (30º)– e o Brasil não tem nenhum. O brasileiro Thomas Bellucci é apenas o número 61º.
No feminino, a paulista Bia Haddad Maia, de apenas 20 anos, faz uma temporada promissora e é a esperança de um futuro melhor para o tênis do país.
Já as duplas têm sido um alento na seca de títulos que o Brasil vive nas disputas de simples.
O mineiro Marcelo Melo, 33, venceu Roland Garros em 2015 e meses depois se tornou o melhor do mundo. No ano seguinte, o conterrâneo Bruno Soares, 35, levou os Abertos da Austrália e dos EUA.
DUPLA FALTA
Ah, e o ex-presidente da Confederação Brasileira de Tênis, Nelson Nastás [já citado aqui neste post], que em 1997 vislumbrou um futuro melhor na modalidade graças a Guga, foi afastado do cargo no final de 2004, acuado por denúncias de irregularidades no uso de verbas públicas –estas reclamadas por ele às vésperas do primeiro Grand Slam vencido pelo tenista.
* Grand Slam (Abertos da Austrália, dos EUA e da França e Wimbledon)
** Maria Esther Bueno conquistou 19 títulos de Grand Slam (simples + duplas)